quarta-feira, 18 de julho de 2012

D.Eugenio. Artigo de Raimundo Caramuru de Barros

As linhas de força que marcaram a trajetória do Cardeal Eugênio de Araújo Sales podem ser adequadamente ressaltadas na sua coerência quando contextualizadas em dois períodos-chave: nas suas origens na arquidiocese de Natal – RN e nos seus desdobramentos em Salvador e no Rio de Janeiro. 1. Suas origens em Natal O cardeal nasceu em uma família profundamente religiosa graças à forte influência de sua mãe. Não é de admirar que esta família, além de um cardeal, tenha outorgado à Igreja também um bispo, ou mais especificamente, Dom Heitor de Araújo Sales, atual arcebispo emérito de Natal. Para situar a cidade de Natal no tempo e no espaço é preciso levar em conta a decisão de Getúlio Vargas em levar o Brasil a entrar na II Guerra Mundial ao lado da coligação denominada de Forças Aliadas e integrada pela Inglaterra e pelos Estados Unidos. A participação brasileira neste conflito bélico teve uma influência preponderante na estratégia adotada pelas Forças Aliadas para enfrentar o inimigo comum: as Forças do Eixo (Berlim – Roma – Tóquio), constituídas pela Alemanha, Itália e Japão. As Forças Aliadas, em virtude da entrada do Brasil na sua coligação, optaram por enfrentar a Alemanha e a Itália deslocando o seu aparato bélico através do corredor: Estados Unidos, Brasil (Natal), Norte do Continente Africano, Sicília e Itália. O Brasil desempenhava principalmente o papel de trampolim para ocupar o norte do continente africano cobrindo a rota Natal – Dakar (noroeste da África). Aliás, essa estratégia conferiu a Natal o epíteto de “Trampolim da Vitória”. Para levar a cabo essa estratégia, as Forças Aliadas, implantaram nos arredores de Natal - mais precisamente em uma área denominada Parnamirim - uma base aérea com cerca de dezoito pistas de pouso. Flotilhas de aviões decolavam regularmente durante as 24 horas do dia do território dos Estados Unidos com destino a Natal, onde eram abastecidos para atravessar o Atlântico em voo direto até Dakar no Noroeste africano. Natal no início da década de 1940 era uma cidade pacata com uma população de cerca de 10.000 habitantes. Em cinco anos, ao término da II Guerra Mundial, passou a abrigar um contingente demográfico de cerca de 90.000. Neste período a arquidiocese de Natal tinha como bispo Dom Marcolino Esmeraldo de Souza Dantas. Por causa de uma catarata que não quis operar, este prelado foi sendo privado pouco a pouco de sua capacidade visual, o que lhe impedia de acompanhar presencialmente o andamento da (arqui) diocese, máxime no momento crítico em que esta estava sendo abalada pelos impactos decorrentes da guerra. Para superar suas limitações Dom Marcolino valeu-se, entre outros expedientes, dos serviços do jovem sacerdote Eugênio Sales - então capelão da Polícia - que passou a despachar com ele regularmente, a fim de colocá-lo a par dos assuntos arquidiocesanos. Desta maneira, este jovem sacerdote foi sendo iniciado na sistemática de governo de uma circunscrição eclesiástica. Devido à presença dominante de forças militares em Natal, em virtude da base aérea, padre Eugênio precisou também acostumar-se a dialogar com os militares, a fim de informar adequadamente o seu Prelado sobre estas transformações pelas quais passava a capital potiguar. Com o término da Guerra e com a desativação progressiva de boa parte da base aérea, surgiu um desafio de grandes proporções em virtude do desemprego de parcela significativa dos trabalhadores que tinham acorrido para Natal, a fim de atender às necessidades criadas quando as bases exigiam um contingente bem superior de mão de obra. Nessas circunstâncias padre Eugênio, recorrendo às assistentes sociais formadas pela Escola de Serviço Social mantida pela arquidiocese, buscou novos caminhos para aproveitamento desta mão de obra desempregada, mas disponível. Desta maneira surgiu um programa social que serviu de base ao que depois se convencionou chamar “Movimento de Natal”, ou seja, uma inciativa da Igreja, para dotar os trabalhadores e as populações carentes dos instrumentos que os capacitassem a se tornar sujeitos de seu próprio desenvolvimento. Em resumo três iniciativas foram fundamentais para a estruturação do “Movimento de Natal”: a reunião mensal do clero, realizadas regularmente a partir de 1948; a fundação do Serviço de Assistência Rural – SAR em 1949; e o treinamento permanente de líderes a partir de 1952. Em 1957, Dom Eugênio, já na qualidade de administrador apostólico da arquidiocese de Natal, foi à Colômbia, a fim de conhecer as escolas radiofônicas implantadas por Monsenhor José Joaquim Salcedo, diretor da Rádio Sutatenza. Aproveitando a mesma viagem regressou pelo Peru para conhecer uma experiência bem sucedida de caprinocultura que, segundo um técnico que assessorava a arquidiocese de Natal, poderia ser eventualmente implantada na sub-região de Angicos, uma das áreas mais secas do Rio Grande do Norte. No regresso desta viagem Dom Eugênio, de acordo com o clero, resolveu implantar na arquidiocese de Natal as escolas radiofônicas, inspiradas na experiência da Colômbia. O passo inicial para concretizar esta iniciativa consistiu em obter a concessão de um canal de rádio. Uma vez obtida esta concessão, a rádio serviu não apenas para a alfabetização de adultos, mas também para aperfeiçoar as comunicações entre a sede arquidiocesana e as paróquias e movimentos de leigos de toda a circunscrição eclesiástica, bem como para apoiar todos os programas da arquidiocese, destinados à educação das populações rurais. No Brasil a educação através de escolas radiofônicas recebeu significativos aperfeiçoamentos pela utilização do método ver-julgar-agir da ação católica especializada e pela aplicação da pedagogia do oprimido, formulada pelo educador Paulo Freire. Muitas dioceses das macrorregiões nordeste, centro oeste e mesmo norte manifestaram interesse em implantar essas escolas. Para atender a esta demanda a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) celebrou um convênio com o Ministério da Educação, que se consubstanciou na criação do Movimento de Educação de Base – MEB, dotado de recursos para atender nessas três macrorregiões às circunscrições eclesiásticas interessadas no empreendimento. Em 1964 Dom Eugênio foi nomeado administrador apostólico da arquidiocese de Salvador – Bahia. 2. Desdobramentos em Salvador e no Rio de Janeiro Para entender melhor esses desdobramentos é pertinente ressaltar que a primeira Constituição Republicana, na virada do século XIX para o século XX, abolira o regime do padroado segundo o qual o Catolicismo era a religião oficial do Estado brasileiro, e estabelecera o regime de separação entre Igreja e Estado, por solicitação inclusive da própria Igreja Católica. Aos 27 de abril de 1892 o Papa Leão XIII elevou a diocese do Rio de Janeiro à categoria de arquidiocese e Sé Metropolitana por meio da bula “Ad universas orbis Ecclesias”. Em coerência com este novo regime, em 1897 o arcebispado metropolitano do Rio de Janeiro foi assumido por Dom Joaquim Arcoverde de Albuquerque Cavalcanti por designação também do Papa Leão XIII. No consistório de 11 de dezembro de 1905, presidido na Basílica de São Pedro pelo Papa Pio X, Dom Joaquim Arcoverde foi elevado ao cardinalato. Durante 30 anos foi o único prelado de toda a Igreja nos demais países da América Latina a ser agraciado com o chapéu cardinalício. O Cardeal Arcoverde teve como sucessor Dom Sebastião Leme da Silveira Cintra, primeiramente como arcebispo coadjutor com direito à sucessão em 1921. Com o falecimento do Cardeal Arcoverde em 1930, Dom Sebastião Leme assumiu a arquidiocese do Rio de Janeiro como arcebispo de pleno direito. Sua estratégia pastoral configurou-se em duas perspectivas inicialmente paralelas, para se tornarem convergentes no longo prazo: evangelização da elite carioca e evangelização da massa de fiéis que viviam sua fé na prática da religiosidade popular e precisavam ser educados para uma fé mais adulta. Com o falecimento de Dom Sebastião Leme em 1942, a Santa Sé designou como seu sucessor Dom Jaime de Barros Câmara. Este se distinguira como bispo da diocese de Mossoró na região oeste do Rio Grande do Norte. No final de 1941, Dom Jaime foi transferido para a arquidiocese de Belém, no Pará. Permaneceu, porém, menos de dois anos como arcebispo desta circunscrição eclesiástica, quando foi transferido para a arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro em meados de 1943, onde permaneceu até 1971. Na arquidiocese do Rio de Janeiro, Dom Jaime não repetiu o sucesso que o notabilizara na diocese de Mossoró. Sua estratégia pastoral consistiu apenas em assumir diretamente o acompanhamento das paróquias (no estilo ao qual estava habituado) e confiar a bispos auxiliares todas as demais dimensões pastorais exigidas por uma cidade do porte e da envergadura do Rio de Janeiro. Faltava uma estratégia de conjunto que articulasse e integrasse toda a atuação da Igreja nesta circunscrição eclesiástica. A própria pastoral paroquial em uma metrópole das dimensões do Rio de Janeiro diferia muito da pastoral paroquial em uma cidade de porte médio no interior do Brasil. Essas limitações ocasionaram sérias disfunções que prejudicaram o desempenho da atuação da Igreja em um período crítico em que o Rio de Janeiro deixara de ser a capital do país. É necessário, porém, continuar acompanhando a trajetória de Dom Eugênio Sales, ressaltando especialmente sua atuação como arcebispo na sede primacial de Salvador – BA, onde permaneceu até 1971. Neste período e nesta condição foi distinguido com o Cardinalato no Consistório de abril de 1969, presidido pelo Papa Paulo VI. Na arquidiocese de Salvador começou a implantar o mesmo modelo pastoral que introduzira com sucesso na arquidiocese de Natal. Apenas o adaptou ao novo contexto e às potencialidades locais. Em 13 de março de 1971 o já então Cardeal Eugênio de Araújo Sales foi designado pelo Papa Paulo VI como arcebispo da arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro e nesta condição nela permaneceu por 30 anos até 25 de julho de 2001, quando sua renúncia - por limite de idade - foi aceita pelo Papa João Paulo II. O exercício de seu ministério episcopal nesta circunscrição eclesiástica coincidiu com um período crítico para a chamada cidade maravilhosa. Com efeito, desde 1960 esta cidade deixara de ser a capital da República sustentada pelas benesses do Governo Federal e ainda não tinha condições para se tornar uma cidade de envergadura planetária na condição de patrimônio cultural da humanidade. De um lado continuava com o encargo de cuidar de todo o acervo político, econômico, social, cultural e religioso que acumulara ao longo dos duzentos anos em que fora capital do Estado brasileiro. De outro lado, ainda não tinha clareza sobre o futuro que a aguardava no limiar do século XXI. Para o Cardeal Eugênio Sales o Rio de Janeiro não era desconhecido, pois no período em que a cidade era capital da República ele a visitava com frequência, seja para viabilizar projetos governamentais de interesse da arquidiocese de Natal, seja para exercer suas responsabilidades na CNBB, onde era titular de duas secretarias, ou seja, a secretaria de opinião pública que cuidava dos meios de comunicação social e a secretaria de promoção humana a serviço do exercício da cidadania. Tinha conhecimento das iniciativas de Dom Hélder em prol do mais de um milhão de favelados dos morros cariocas e de áreas da baixada fluminense. Pelas suas responsabilidades na CNBB estava a par da complexidade da elite carioca e de seu peso e importância no cenário nacional. Dentro deste novo contexto, agravado pela influência dominante da “linha dura” dentro das Forças Armadas durante o Governo Médici no início da década de 1970, o Cardeal Eugênio Sales, ao assumir como arcebispo a arquidiocese do Rio de Janeiro em 1971 pôde definir com maior precisão o seu posicionamento de pastor desta arquidiocese. Seu posicionamento era essencial e exclusivamente pastoral. Desta maneira descartava qualquer apoio aos posicionamentos de caráter ideológico, seja de direita, de centro ou de esquerda. Era um posicionamento à luz do Desígnio divino de salvação. Em termos mais concretos pode-se dizer que ele estribou-se na fundamentação teológico – pastoral do método ver - julgar – agir, em que a realidade histórica (o ver) é apreciada à luz do Desígnio divino nas suas causas e consequências e não nas ideologias reinantes. De igual forma o “juízo” de valores com respeito a esta realidade histórica baseia-se nos valores ressaltados pela revelação divina e acolhidos na fé. Em terceiro lugar a decisão sobre as ações (agir) a serem empreendidas devem ser inspiradas pelos preceitos do Amor a Deus e ao próximo ressaltados pelo depósito revelado. Qualquer interpretação à margem desses pilares do Desígnio divino de Salvação é espúria, deformante e eivada de viés do ponto de vista teológico pastoral. Quando o Cardeal Eugênio Sales toma a decisão de abrigar mais de quatro mil perseguidos políticos, tanto brasileiros como estrangeiros, ameaçados de morte ou de serem eliminados como desaparecidos, ele age na sua fidelidade ao Desígnio divino que como pastor tem a missão de promover, mesmo enfrentando as incompreensões e resistências de um regime militar autoritário e ditatorial. A firmeza e o descortino caracterizaram sua atuação na qualidade de pastor desta complexa e original circunscrição eclesiástica. O plano estratégico de pastoral por ele formulado e executado com a participação de todas as forças arquidiocesanas e em diálogo com a sociedade carioca foi determinante para o seu sucesso.

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