Teologia da Libertação: autocrítica e perspectivas
Este artigo de J.B. Libânio, escrito originalmente para um livro e disponibilizado no seu site, apresenta de forma sintética e profunda a autocrítica da Teologia da Libertação e algumas perspectivas para a futuro.
A TdL diante de tantas críticas, da crescente resistência do magistério eclesiástico, do fracasso dos movimentos alimentados por ela (Revolução Sandinista, lutas populares), da queda do Socialismo real, da cultura pós-moderna com o surto religioso e da extrema subjetividade atual, do novo paradigma científico emergente empreendeu sua autocrítica. Revendo o seu discurso, reconhece-lhe certo pessimismo e negativismo sobre o mundo presente e sobre o ser humano, lido sob a ótica da opressão. Discurso monocórdico e positivista que pensa dar conta cabal da realidade, atropelando-lhe a complexidade, hoje amplamente desvendada pelas ciências sociais, pelas novas biociências, pelas ciências cognitivas e do comportamento humano (etologia), pelas novas tecnologias da informação e comunicação. Ao mesmo tempo, era uma teologia idealista, virtual, que imaginava ser realidade os seus desejos como a Igreja dos pobres, o sujeito histórico popular, o pendor natural e ético do ser humano para a solidariedade.
Uma linguagem dualista a marcou, visualizando um grande inimigo – o capitalismo - a ser combatido à custa de sacrifícios e de um compromisso, que descuidaram a dimensão lúdica e prazerosa da vida. Isto lhe tirou o encanto e prazer. Ela necessita tornar-se uma teologia humanamente saudável. A TdL inicial tinha grandes vazios: “a corporeidade, o prazer, o “saber viver”, o “estar bem com a vida”, o direito de consumir bens e serviços variados e de qualidade, a beleza, a imersão em imaginários esperançadores, a autoestima, o incentivo a aspirações e à iniciativa, o embalo da paixão, etc. “ (Assmann, 2000: 126). A revisão tem consistido mais na ampliação de seus horizontes do que no refazimento de seu método ou princípios fundamentais por estar consciente de que marcou significativamente o universo teológico, a vida da Igreja e da Sociedade para além da AL como primeira teologia original desde a periferia. Sabe-se atual enquanto houver pobreza e injustiça social e cristãos que queiram lutar contra elas a partir de sua fé. Foi presença questionadora para militantes e intelectuais que rejeitavam a fé cristã por causa de sua vinculação histórica com posições ideologicamente conservadoras.
Irrenunciáveis são seu método, sua opção fundante pela libertação dos pobres, a articulação fé e vida, Revelação e realidade social, teoria e práxis, sua vinculação com as CEBs. Percebeu que tem de ampliar a gama dos oprimidos para além da pobreza material incluindo a etnia, o gênero, a ecologia, a religião. Para tal, exige-se uma reformulação das mediações socioanalíticas, ao inserir nelas a antropologia, a etnologia, a psicologia nas suas diversas formas. Reconhece sua carência no campo da pneumatologia, tanto na sua articulação com a pessoa histórica de Jesus, quanto com a eclesiologia. A dimensão da subjetividade e da espiritualidade fora negligenciada. Por distanciar-se do culturalismo e por prender-se demasiado às estruturas socioeconômicas esposara uma visão estreita da cultura. Percebe a necessidade de desenvolver uma confrontação com a cultura, a ética e a religião. Descobre a possibilidade de alianças com movimentos sociais alternativos, regionais e mundiais, em torno desses três campos, valorizando uma presença na sociedade civil em vez de fechar-se exclusivamente numa luta no espaço da sociedade política, do Estado.
Uma visão preconceituosa da religião popular foi já desde bom tempo confessada e corrigida. Ela não cultivou uma teologia do cotidiano dos pobres no campo religioso ou secular, onde há muito espaço para sua humanização e pequenas libertações. O pobre é também realidade de inspiração e esperança pela sua fé, valores humanos e não só de indignação contra a situação a que foi submetido. Desafia a TdL a nova situação religiosa criada pelos grupos evangélicos neopentecostais. Os pobres mais pobres não freqüentam as CEBs, mas essas igrejas. Elas oferecem respostas às necessidades imediatas do povo pobre. Prometem-lhe para logo a cura divina de seus males físicos e psíquicos, a libertação do demônio (exorcismo), a prosperidade material, o alívio, o consolo e bem-estar espiritual, a dignidade humana pela recuperação dos vícios, experiências de transe e dons carismáticos sob a liderança autoritária do pastor. Seduzem o povo. Falam a um inconsciente povoado de símbolos religiosos tradicionais e afroameríndios, ressemantizando-os. Fazem o oposto das CEBs que o conscientizavam para a luta num horizonte utópico. Dão uma importância ao corpo de cada pessoa, sua saúde, o que a TdL não fez. Alienam as pessoas da consciência política e social para colocar unicamente na fé a solução de seus problemas a curto prazo. O dízimo-sacrifício representa a maneira “compensatória” de obter-se a bênção de Deus. O discurso libertário da TdL necessita ser repensado à luz desse fato de proporções gigantescas, entendendo, recuperando e interpretando na perspectiva libertadora os símbolos religiosos do povo.
Há uma pós-modernidade popular que interpela a TdL. O povo desconfia das “grandes narrativas” libertárias sociais que nada de bem lhe trouxeram. Percebe que os progressos da razão não são para ele. Experimenta antes o reverso da história, daí sua abertura a discursos espiritualistas com soluções imediatas, onde se misturam elementos da pré-modernidade, modernidade e pós-modernidade. A TdL necessita ter a sensibilidade de perceber no povo essa imbricação de horizontes culturais e falar-lhe em termos de fé. A sociedade e a cultura oferecem enorme pluralidade de práticas sociais possíveis, de valores, de perspectivas. No horizonte de suas opções fundamentais é chamada a ajudar o povo a discernir, renunciando um monolitismo de projeto.
Desafia-lhe saber situar-se entre a utopia e a realidade, sem cair no engodo da capitulação diante do neoliberalismo globalizado nem do utopismo idealista. Em termos eclesiais significa navegar contra as correntezas espiritualistas alienantes, o conservadorismo intraeclesial, um catolicismo de marketing mediático. Ontem desafiava a TdL pensar a fé numa situação de pobreza, mantida pela violência dos regimes militares; hoje a pobreza é pior, mas mantida pela ilusão das promessas neoliberais e das igrejas neopentecostais.
Texto: J.B. Libânio
Este artigo de J.B. Libânio, escrito originalmente para um livro e disponibilizado no seu site, apresenta de forma sintética e profunda a autocrítica da Teologia da Libertação e algumas perspectivas para a futuro.
A TdL diante de tantas críticas, da crescente resistência do magistério eclesiástico, do fracasso dos movimentos alimentados por ela (Revolução Sandinista, lutas populares), da queda do Socialismo real, da cultura pós-moderna com o surto religioso e da extrema subjetividade atual, do novo paradigma científico emergente empreendeu sua autocrítica. Revendo o seu discurso, reconhece-lhe certo pessimismo e negativismo sobre o mundo presente e sobre o ser humano, lido sob a ótica da opressão. Discurso monocórdico e positivista que pensa dar conta cabal da realidade, atropelando-lhe a complexidade, hoje amplamente desvendada pelas ciências sociais, pelas novas biociências, pelas ciências cognitivas e do comportamento humano (etologia), pelas novas tecnologias da informação e comunicação. Ao mesmo tempo, era uma teologia idealista, virtual, que imaginava ser realidade os seus desejos como a Igreja dos pobres, o sujeito histórico popular, o pendor natural e ético do ser humano para a solidariedade.
Uma linguagem dualista a marcou, visualizando um grande inimigo – o capitalismo - a ser combatido à custa de sacrifícios e de um compromisso, que descuidaram a dimensão lúdica e prazerosa da vida. Isto lhe tirou o encanto e prazer. Ela necessita tornar-se uma teologia humanamente saudável. A TdL inicial tinha grandes vazios: “a corporeidade, o prazer, o “saber viver”, o “estar bem com a vida”, o direito de consumir bens e serviços variados e de qualidade, a beleza, a imersão em imaginários esperançadores, a autoestima, o incentivo a aspirações e à iniciativa, o embalo da paixão, etc. “ (Assmann, 2000: 126). A revisão tem consistido mais na ampliação de seus horizontes do que no refazimento de seu método ou princípios fundamentais por estar consciente de que marcou significativamente o universo teológico, a vida da Igreja e da Sociedade para além da AL como primeira teologia original desde a periferia. Sabe-se atual enquanto houver pobreza e injustiça social e cristãos que queiram lutar contra elas a partir de sua fé. Foi presença questionadora para militantes e intelectuais que rejeitavam a fé cristã por causa de sua vinculação histórica com posições ideologicamente conservadoras.
Irrenunciáveis são seu método, sua opção fundante pela libertação dos pobres, a articulação fé e vida, Revelação e realidade social, teoria e práxis, sua vinculação com as CEBs. Percebeu que tem de ampliar a gama dos oprimidos para além da pobreza material incluindo a etnia, o gênero, a ecologia, a religião. Para tal, exige-se uma reformulação das mediações socioanalíticas, ao inserir nelas a antropologia, a etnologia, a psicologia nas suas diversas formas. Reconhece sua carência no campo da pneumatologia, tanto na sua articulação com a pessoa histórica de Jesus, quanto com a eclesiologia. A dimensão da subjetividade e da espiritualidade fora negligenciada. Por distanciar-se do culturalismo e por prender-se demasiado às estruturas socioeconômicas esposara uma visão estreita da cultura. Percebe a necessidade de desenvolver uma confrontação com a cultura, a ética e a religião. Descobre a possibilidade de alianças com movimentos sociais alternativos, regionais e mundiais, em torno desses três campos, valorizando uma presença na sociedade civil em vez de fechar-se exclusivamente numa luta no espaço da sociedade política, do Estado.
Uma visão preconceituosa da religião popular foi já desde bom tempo confessada e corrigida. Ela não cultivou uma teologia do cotidiano dos pobres no campo religioso ou secular, onde há muito espaço para sua humanização e pequenas libertações. O pobre é também realidade de inspiração e esperança pela sua fé, valores humanos e não só de indignação contra a situação a que foi submetido. Desafia a TdL a nova situação religiosa criada pelos grupos evangélicos neopentecostais. Os pobres mais pobres não freqüentam as CEBs, mas essas igrejas. Elas oferecem respostas às necessidades imediatas do povo pobre. Prometem-lhe para logo a cura divina de seus males físicos e psíquicos, a libertação do demônio (exorcismo), a prosperidade material, o alívio, o consolo e bem-estar espiritual, a dignidade humana pela recuperação dos vícios, experiências de transe e dons carismáticos sob a liderança autoritária do pastor. Seduzem o povo. Falam a um inconsciente povoado de símbolos religiosos tradicionais e afroameríndios, ressemantizando-os. Fazem o oposto das CEBs que o conscientizavam para a luta num horizonte utópico. Dão uma importância ao corpo de cada pessoa, sua saúde, o que a TdL não fez. Alienam as pessoas da consciência política e social para colocar unicamente na fé a solução de seus problemas a curto prazo. O dízimo-sacrifício representa a maneira “compensatória” de obter-se a bênção de Deus. O discurso libertário da TdL necessita ser repensado à luz desse fato de proporções gigantescas, entendendo, recuperando e interpretando na perspectiva libertadora os símbolos religiosos do povo.
Há uma pós-modernidade popular que interpela a TdL. O povo desconfia das “grandes narrativas” libertárias sociais que nada de bem lhe trouxeram. Percebe que os progressos da razão não são para ele. Experimenta antes o reverso da história, daí sua abertura a discursos espiritualistas com soluções imediatas, onde se misturam elementos da pré-modernidade, modernidade e pós-modernidade. A TdL necessita ter a sensibilidade de perceber no povo essa imbricação de horizontes culturais e falar-lhe em termos de fé. A sociedade e a cultura oferecem enorme pluralidade de práticas sociais possíveis, de valores, de perspectivas. No horizonte de suas opções fundamentais é chamada a ajudar o povo a discernir, renunciando um monolitismo de projeto.
Desafia-lhe saber situar-se entre a utopia e a realidade, sem cair no engodo da capitulação diante do neoliberalismo globalizado nem do utopismo idealista. Em termos eclesiais significa navegar contra as correntezas espiritualistas alienantes, o conservadorismo intraeclesial, um catolicismo de marketing mediático. Ontem desafiava a TdL pensar a fé numa situação de pobreza, mantida pela violência dos regimes militares; hoje a pobreza é pior, mas mantida pela ilusão das promessas neoliberais e das igrejas neopentecostais.
Texto: J.B. Libânio
Luís Henrique Alves Pinto