Sei que este texto chega um pouco tarde, mas se alguém ainda está procurando algo para se abster nesta
Quaresma, eu sugeriria que os seguintes equívocos sobre a
Igreja Católica e sobre o
Cristianismo em geral seriam excelentes pedaços de lixo intelectual para se livrar no espírito da estação.
A análise é de
John L. Allen Jr., publicada no sítio
National Catholic Reporter, 02-03-2012. A tradução é de
Moisés Sbardelotto.
Naturalmente, os locais onde esses três mitos tendem a estar mais profundamente enraizados – a mídia, a academia, os círculos políticos seculares e assim por diante – também são lugares onde toda a ideia de sacrifício quaresmal é às vezes uma impossibilidade. No entanto, eles estão notavelmente difundidos dentro da Igreja também, entre pessoas que realmente deveriam conhecê-la melhor. Se os católicos perpetuam essas ideias, é difícil culpar o mundo exterior por se deixar seduzir por eles.
Aqui estão três falácias populares, na esperança de que a
Quaresma 2012 possa marcar o início da data de validade de cada uma delas.
1. Eclesiologia púrpura
A "eclesiologia púrpura" refere-se à noção de que os principais atores do drama católico são o clero e, de fato, a única atividade que realmente conta como "católica" em geral é aquela realizada pela casta clerical da Igreja, especialmente os seus bispos. Você sempre pode detectar a eclesiologia púrpura em funcionamento quando ouvir alguém dizer "a Igreja" quando o que realmente se quer dizer é "a hierarquia."
(Eu já fui chamado uma vez por uma produtor da
BBC em busca de protagonistas para um programa que eles queriam fazer sobre as mulheres na
Igreja Católica. Eu enumerei uma série de leigas católicas de alto perfil às quais eles podiam contatar, ao que a produtora respondeu: "Me desculpe, eu preciso de alguém da Igreja". Ela quis dizer, é claro, alguém com um colarinho romano – essa é a eclesiologia púrpura em ação).
A verdade é que o número de padres ordenados na
Igreja Católica chega a cerca de 0,04% do total da população católica de 1,2 bilhão de pessoas. Se eles são o ato principal, então tudo se pode dizer é que o show católico está desenfreadamente sobrecarregado com um elenco de apoio.
A natureza autoparodística da eclesiologia púrpura foi uma vez foi memoravelmente capturada pelo cardeal
John Henry Newman, que, questionado sobre a sua opinião sobre o laicato, respondeu: "Bem, nós pareceríamos terrivelmente ridículos sem eles".
Ver a Igreja através de um filtro púrpura é enganoso, mesmo que tudo o que analisemos seja a dimensão visível e institucional da vida católica. A maioria das escolas, hospitais, centros de serviços sociais, movimentos e associações católicos, até mesmo secretarias e sedes paroquiais, são formados predominantemente por leigas e leigos. Mais profundamente, porém, a Igreja não existe para si mesma, mas sim para mudar o mundo, o que significa que, se sua mensagem deve penetrar nos vários campos da cultura – a medicina, o direito, a academia, a política, a economia e assim por diante – ou ela será levada até lá pelos leigos, ou não será.
Abandonar a eclesiologia púrpura permite um foco mais amplo sobre o que a história católica do nosso tempo realmente é. Essa história não se limita a qualquer declaração que os bispos norte-americanos fizeram essa semana sobre apólices de seguro ou ao pronunciamento vaticano mais recente sobre a prática litúrgica, independentemente de quão importantes esses desenvolvimentos possam ser. A história católica completa também inclui o que centenas de milhões de leigas e leigos estão fazendo em suas próprias vidas e em seus círculos de influência, motivados pela sua fé.
Dentre outras coisas, uma eclesiologia púrpura nos deixa mal equipados para ver a mudança criativa tomando forma na Igreja. Mesmo um entendimento rudimentar de história da Igreja é suficiente para concluir que essa mudança raramente vem de cima para baixo.
O catolicismo desenvolveu as ordens mendicantes, por exemplo, não porque um papa decretou que assim deveria ser, mas porque indivíduos criativos como
Domingos e
Francisco viram um mundo novo nascendo nas grandes cidades da Europa nos séculos XII e XIII, e desenvolveram novo modelos apostólicos para evangelizá-las. O catolicismo deu à luz grandes movimentos leigos do século XX, como
L'Arche,
Comunhão e Libertação,
Schönstatt e
Santo Egídio, precisamente da mesma forma – de baixo para cima.
Qualquer panorama sobre o catolicismo no século XXI que não incluir os
Focolares juntamente com os bispos, ou o projeto
Catholic Voices e a rede
Salt and Light juntamente com o
Vaticano, ou a grande ascensão do ministério leigo somado ao
Colégio dos Cardeais, simplesmente não estará vendo o quadro por inteiro.
Se você não entender isso, então você realmente não entende a Igreja.
2. Uma Igreja em declínio
A opinião popular sobre o catolicismo nos dias de hoje tende a ser de que ela é uma Igreja em crise. Abalada por escândalos sexuais, lutas políticas agressivas e déficits financeiros, ela parece estar sofrendo de uma hemorragia de membros – um recente estudo do
Pew Forum constatou que há agora 22 milhões de ex-católicos nos
EUA, que seria o segundo maior grupo religioso do país depois daquilo que restou da própria Igreja Católica –, assim como como fundindo paróquias, fechando instituições e lutando para transmitir a fé para a próxima geração.
A percepção geral é que essa é uma era de entropia católica – declínio, contração, coisas cada vez menores.
Visto a partir de uma perspectiva global, contudo, isso está simplesmente errado, absolutamente errado. A última metade do século testemunhou o maior período de expansão missionária nos 2.000 anos de história de catolicismo, alimentada pelo crescimento explosivo no hemisfério Sul. Tomemos a
África subsaariana como um caso em questão: a população católica no início do século XX era de 1,9 milhão, enquanto, no fim do século, era de mais de 130 milhões, representando uma impressionante taxa de crescimento de 6.708%. Em geral, a pegado católica mundial subiu de 266 milhões em 1900 para 1,1 bilhão em 2000, à frente da taxa global de aumento da população mundial, e ainda está crescendo hoje.
A narrativa católica dominante do nosso tempo, em outras palavras, não é o declínio, mas sim o crescimento astronômico (isso não é verdade em todos os lugares, porque há perdas significativas na
Europa, em partes da
América do Norte e em alguns bolsões da
América Latina, mas esse é o grande quadro mundial).
Repassando esses números, lembramo-nos de um famoso artigo de 2003 de
David Brooks, zombando das elites seculares que gostam de acreditar que a religião está em declínio: "Um grande
Niagara de fervor religioso está caindo em cascata ao redor deles", escreveu, "enquanto eles permanecem parvos e secos na pequena caverna do seu próprio paroquialismo".
Mesmo nos
EUA, a
Igreja Católica está realmente se defendendo. Sim, ela perdeu um terço dos norte-americanos nascidos nessa fé, mas a sua taxa de retenção de dois terços é realmente bastante saudável segundo os competitivos padrões do escancarado mercado religioso dos
EUA (ela é muito maior do que, digamos, a das
Testemunhas de Jeová, que retêm apenas um terço dos seus membros).
Além disso, a
Igreja Católica está segurando firmemente cerca de um quarto da população nacional, em grande parte graças à imigração hispânica e taxas de natalidade maiores do que a média entre os católicos hispânicos. Nas palavras de
Luis Lugo, diretor do
Pew Forum, o catolicismo norte-americano está se "bronzeando", mas não se contraindo.
Na verdade, as estatísticas por si sós não resolvem as disputas sobre as escolhas que estão perante a Igreja. Aqueles 22 milhões de ex-católicos dos
EUA, por exemplo, não representam necessariamente um "referendo de insatisfação" contra o desvio conservador das lideranças da Igreja no último quarto de século, especialmente quando consideramos que, de acordo com os dados do
Pew, uma parte considerável desertou para o protestantismo evangélico. Nem o fenomenal crescimento do catolicismo no Sul global necessariamente significa um endosso à política vaticana atual, porque, honestamente, o Vaticano teve muito pouco a ver com isso.
Em outras palavras, você não pode desenhar uma linha reta a partir dos dados populacionais até quem está certo ou errado nos atuais debates católicos. O que pode se dizer com certeza empírica, entretanto, é que qualquer pessoa que pense que essa é uma era de declínio católico precisa sair por aí mais vezes.
3. O cristianismo é o opressor, não o oprimido
De todos os equívocos populares sobre o catolicismo, e sobre o cristianismo em geral, esse é provavelmente o mais pernicioso.
Alimentado por imagens históricas das
Cruzadas e da
Inquisição, e até mesmo pelas atuais percepções de riqueza e poder dos líderes das Igrejas e das instituições, é difícil para os observadores ocidentais compreender que, em um crescente número de questões candentes mundiais, os cristãos são hoje os oprimidos indefesos, não os opressores arrogantes.
Eis a dura realidade dos nossos tempos: no início do século XXI, estamos testemunhando a ascensão de uma nova geração de mártires cristãos.
Os cristãos são hoje, estatisticamente falando, de longe, o grupo religioso mais perseguido do planeta. Segundo a
Sociedade para os Direitos Humanos, com sede em
Frankfurt, um total de 80% de todos os atos de discriminação religiosa no mundo hoje são voltados contra os cristãos. O
Pew Forum estima que os cristãos experimentam a perseguição em um impressionante total de 133 nações, dois terços de todos os países do mundo.
Como parte desse quadro, a agência católica
Ajuda à Igreja que Sofre estima que 150 mil cristãos morrem por causa de sua fé a cada ano, em lugares que vão desde o
Oriente Médio até o
Sudeste Asiático, passando pela
África subsaariana e por partes da
América Latina. Isso significa que, a cada hora do dia, cerca de 17 cristãos são mortos em algum lugar do mundo, seja por ódio à fé, seja por ódio pelas obras de caridade e de justiça que a sua fé os compele a realizar.
Talvez o exemplo emblemático seja o Iraque, onde uma forte comunidade cristã que levou dois milênios para se construir foi devastada no arco de pouco mais de duas décadas. Antes de 1991, o ano da
Primeira Guerra do Golfo, havia mais de 2 milhões de cristãos no Iraque, enquanto hoje a estimativa é de que há entre 250 mil e 400 mil.
Dada a responsabilidade especial que os
EUA têm no
Iraque, o fato de o destino dos cristãos iraquianos não ser uma prioridade motriz e central na vida católica norte-americana não é nada menos do que um ultraje moral.
Enquanto os bispos norte-americanos se preparam para combater um novo conjunto de batalhas Igreja-Estado no fronte doméstico, esse antecedente sugere um desafio especial para os católicos norte-americanos de manter os olhos abertos. Nos
EUA, uma ameaça à liberdade religiosa normalmente significa que você pode ser processado, enquanto, em muitas partes do mundo, isso significa que você pode levar um tiro. Certamente, todos podemos concordar que esse é um conjunto de circunstâncias mais dramáticas.
Se você vai se abster de qualquer coisa nessa
Quaresma, a incapacidade de reconhecer uma crescente guerra global contra os cristãos seria uma escolha verdadeiramente inspirada.