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segunda-feira, 9 de abril de 2012

Demoniologia

As catástrofes, como de Haiti
A catástrofe foi terrível: como um golpe na consciência do mundo, já castigado pela crise econômica. Por sorte, a reação foi quase surpreendentemente boa. Produziu-se uma espécie de salto qualitativo na solidariedade mundial tanto nos indivíduos como nos estados que, como nunca antes, compreenderam a necessidade, com rigorosa justiça, de unir-se para reconstruir um país destroçado e, antes, exaurido (o cumprirão?). Também a teologia, na quase totalidade dos artigos publicados, soube apontar algo fundamental: não remeter o problema a Deus, centrando-se na catástrofe natural, mas insistir em nossa responsabilidade humana, no fato de que, por nossa culpa, os males causados tenham afetado antes de tudo e sobretudo os pobres. Eles sofreram e sofrem majoritariamente as piores e mais dolorosas consequências.
O que se espera não é, pois, o puro lamento ou a simples compaixão, mas a ajuda efetiva e a pressão política.
Naturalmente, também senti desejos de escrever algo, pois, ao problema do mal, dediquei uma parte importante da minha reflexão e um bom punhado de trabalhos. Por ventura, o fato de estar acabando um livro a respeito, e sobretudo a reação tão positiva que se percebia por todas partes fizeram com que me conformasse em ver e saborear o claro avanço que se produziu nas reações. Apesar de tudo, não me abandonava minha velha suspeita que algo faltava.
Tudo isso é verdade, mas o terremoto não o produzimos, e sem ele, o problema teria desaparecido pela raiz: por que Deus não o evitou? Latet anguis in herba, pensava, "a víbora segue oculta entre a erva".

"Mistério" - acabam respondendo em geral os artigos. Mas, mistério por quê? Mistério real ou contradição produzida pelas nossas ideias e pressupostos? Milhares de homens e mulheres estiveram no Haiti, renunciando o sonho e expondo a vida para ajudar as vítimas. Se na sua mão estivesse a possibilidade de evitar previamente o terremoto, haveria sequer um só que deixaria de fazê-lo?
No entanto, muitos crentes e teólogos seguem dando por certo que Deus sim poderia, mas que não o faz; mas, sendo onipotente, isso, definitivamente, significa que não quer. Outros, menos, atrevem-se a dizer que não pode; mas então que "deus" é esse, e quem poderá dar-nos esperança?
Epicuro já o tinha perguntado há muitos séculos. E, como era de se esperar, a víbora levantou a cabeça. Martín Caparrós, no El País, 07/02/2010, sem aludir ao famoso dilema - talvez sem sequer conhecê-lo - e referindo-se primeiro ao terremoto de Lisboa (1755), afirma com todo rigor: "A existência -a insistência- do mal fazia com que esse deus fosse um ineficiente ou um vicioso: ou o fazia à vontade e era o maior canalha, ou não podia evitá-lo e era um perfeito inútil".

E depois, dando um salto, irrita-se falando do Haiti: "Portanto, apesar do mal descontrolado - apesar de terremotos e de fomes, massacres e tsunamis -, milhões seguem ajoelhando-se diante de um deus que o faz ou o permite. E, para completar, ainda o anunciam. Para mim, tudo muito estranho. Se eu achasse que esse deus existisse - se achasse que em algum lugar do infinito existe um ente todo-poderoso que não usa seu poder para impedir estes desastres -, se eu achasse que há um deus tão mau caráter para matar de uma vez cem mil mortos de fome, e se esse deus fosse meu deus, meu amo, não tentaria protegê-lo: passaria a vida negando-o, dizendo a todo o mundo que não há tal coisa. O que é isso? Deus? Um deus, o que isso significa? Frente a desgraças como esta, o verdadeiro crente não tem mais remédio que fingir-se ateu - e, talvez, vice-versa. Portanto, é preciso duvidar de quase tudo, como sempre".
Hesitei em reproduzir um texto tão abrupto. Quero pensar que ao escrever deus com minúscula e colocar o condicional - "se eu achasse que esse deus existisse" - se está atacando um ídolo. Em todo caso, o afirmo eu. E, não sem lamentar essas expressões que podem ferir tão brutalmente a fé dos crentes, quero tomá-las como um sério e urgente aviso para a teologia.
O tenho repetido muitas vezes: é preciso desfazer com rigor crítico o dilema de Epicuro, descobrindo sua armadilha e mostrando sua falsidade. Em tempos de religiosidade comum e compartilhada, a fé em Deus podia sustentar-se, apoiando-se em uma confiança radical que era capaz de desafiar a lógica, porque pressentia que esta tinha que falhar em algum ponto. Isso já não é possível em nossa "era crítica".
Devemos reconhecê-lo, se não por honestidade intelectual, pelo menos porque nos reprova com argumentos contundentes: crer em um "deus" que, podendo, não quisesse acabar com o mal do mundo ou que, querendo, não pudesse, torna-se hoje simplesmente impossível.
Por sorte, a mesma agudeza crítica da modernidade abre o caminho da resposta. A autonomia das leis que regem o funcionamento do mundo e as inevitáveis contradições da finitude, fazem com que o conceito (não a fantasia) de um mundo sem maldade seja tão contraditória como um círculo-quadrado. O dilema de Epicuro tem uma armadilha: substitua-se “mundo-sem-maldade” por “círculo-quadrado” e tire a prova; ou pergunte-se, como, às vezes, faço em minhas explicações, se Deus pode ou não pode dividir a sala em “três-metades”.
Não é que Deus "não queira" ou "não possa", mas simplesmente a pergunta carece de sentido. Deus quer o bem, unicamente o bem, para o bem e a felicidade nos cria.
Falemos humanamente: poderia não haver criado o mundo, e sabe que, se o cria, terá que ser finito (se não, se criaria a si mesmo). Em consequência, a imperfeição, a carência, o conflito - o mal - o acompanharão como uma sombra terrível.
Mas a experiência religiosa mais profunda intuiu sempre que se Deus criou, é porque valia a pena; que Ele, como Anti-mal de amor infinito, acompanha e sustenta nossa aventura, convocando-nos a colaborar com Ele no trabalho do amor e a justiça; e sempre, assegurando o sentido e abrindo a esperança.

Contra o que na superfície pode parecer, nada é menos "moderno" do que deduzir o ateísmo da existência do mal no mundo. Seria desconhecer a autonomia de suas leis e a dignidade de nossa liberdade. A bobagem do tele-evangelista Pat Robertson, esclarecendo que o terremoto do Haiti que não tem nada que ver com as placas tectônicas, porque é um castigo divino, fez um grande favor à inteligência.
No mesmo jornal, Galeano o lembra, e Jared Diamond avisa, - permita-me recordá-lo para que o humor adocique um pouco o horror - que "quando o tele-evangelista Pat Robertson diz que a ira de Deus caiu sobre eles se esquece que é a mesma que cai sobre a Itália, EUA ou o Japão, a mesma ira que deveria cair sobre ele por ser tão estúpido". E, mantenhamos o tom, também sobre nós, se seguimos mantendo teologias que dão pé a tanto mal-entendido.

O diabo (Fernando Veríssimo)


Deus e o Diabo no Haiti
"O Deus vingativo de Pat Robertson certamente não era o Deus de Zilda Arns, que morreu no Haiti trabalhando pela causa da sua vida, a ajuda aos pobres e, principalmente, às crianças", escreve Luís Fernando Verissimo, escritor, em artigo publicado no jornal O Globo, 17-01-2010.
Eis o artigo.
O evangélico Pat Robertson, um dos líderes da direita religiosa americana, tem uma explicação para as desgraças do Haiti que culminaram com esse terremoto demolidor. Um dos países mais miseráveis do mundo, com uma história ininterrupta de privações, violência e instabilidade política, o Haiti estaria pagando por um pacto que fez com o Diabo em 1804, quando pediu sua ajuda para expulsar os colonizadores franceses e tornar-se uma república.
Desde então, os haitianos viveriam sob uma maldição. O terremoto, segundo Pat Robertson, é apenas o castigo mais recente. Mas o religioso pediu a seus fiéis que rezassem pelos haitianos. E, presumivelmente, pedissem a Deus que esquecesse velhos ressentimentos e lhes desse uma folga.
Se o Diabo ajudou mesmo os haitianos contra os franceses foi por uma causa nobre. O Haiti foi o primeiro país do mundo a abolir a escravidão, dando um exemplo que custou a ser seguido pelos outros.
A república, também inédita, fundada depois da expulsão dos franceses era de ex-escravos, e acolhia escravos fugidos ou alforriados de outros países. E se Deus os castigou por esta audácia, não foi o único. A França exigiu e recebeu reparação pela colônia perdida, o que aleijou a economia da nova república por muito tempo. A vizinhança com os Estados Unidos também não ajudou. Os americanos chegaram a ocupar o Haiti durante vinte anos, sem muito proveito para o país. Grandes negócios foram feitos na época dos ditadores Papa Doc e Baby Doc Duvalier, também sem muito proveito para o país. Nos últimos tempos, apoiando e desapoiando líderes mais ou menos populares, os americanos têm tentado manter no Haiti uma democracia representativa mas não representativa demais, a ponto de armar politicamente uma massa de desesperançados, com o risco de eles também convocarem o Diabo. Agora não se sabe o que vai surgir dos escombros da tragédia.
OUTRO
O Deus vingativo de Pat Robertson certamente não era o Deus de Zilda Arns, que morreu no Haiti trabalhando pela causa da sua vida, a ajuda aos pobres e, principalmente, às crianças. O seu era um Deus solidário. Infelizmente, pouca gente no mundo está disposta a fazer um pacto como o que Zilda Arns fez com este outro Deus. Ela sobreviverá como um exemplo e uma inspiração.