terça-feira, 7 de agosto de 2012

de Paulo Suess, sobre Tomas Balduino e mais

LAS CASAS REDIVIVO Paulo Suess http://paulosuess.blogspot.com Dom Tomas Balduíno é uma memória viva da pastoral indigenista da Igreja Católica. Ele enriqueceu essa pastoral com a herança dominicana, viva em pessoas como Las Casas, António e Montesinos e Chenu. Chenu contribuiu para a fundamentação teológica do Vaticano II nas múltiplas dimensões da realidade. O jus-naturalismo, que desde a Conquista contribuiu para a defesa dos povos indígenas, também ajudou no Concílio assumir a alteridade, sobretudo a religiosa, como um direito natural e não como expressão de tolerância. A nova pastoral indigenista pós-conciliar foi forjada na resistência à ditadura militar, à falácia do progresso e às promessas da integração sistêmica. Essa resistência perpassa uma mancha de sangue de testemunhas qualificados na grande tribulação – precursores da páscoa definitiva. Memória Os vestígios dos oprimidos perdem-se facilmente na poeira dos séculos, como a sepultura dos profetas. Conquistadores e vencedores não se apropriam somente das riquezas materiais e espirituais dos vencidos. São também destruidores da memória dos conquistados e profanadores dos sepulcros dos sábios que os contestaram. Enquanto Francisco Pizarro (1476-1541), sanguinário conquistador nas Américas, ganhou uma sepultura bem cuidada na catedral de Lima, os restos mortais do bispo de Chiapas e defensor dos índios, Bartolomé de las Casas (1474-1566), simplesmente se perderam. Astecas e Incas, segundo Las Casas, eram como os antigos romanos e gregos, sujeitos racionais da lei natural, abertos ao Evangelho por persuasão e não por banditismo. Francisco de Vitória, dominicano como Las Casas, em sua Relectio de Indis (1539), lhe deu apoio jurídico desde sua cátedra de Salamanca. No convento dominicano "Nuestra Sra. de Atocha", em Madrid, onde Las Casas, no dia 18 de julho de 1566, morreu, ninguém lembra onde ele está enterrado. No muro da paróquia, uma placa do Ayuntamiento de Madrid, de 1990, lembra: "Aqui murió y fue enterrado en 1566 FRAY BARTOLOMÉ DE LAS CASAS, llamado APOSTOL DE LAS INDIAS". Há uma tradição que os restos mortais de Las Casas teriam sido transladados a Valladolid e enterrados na sacristia do Colégio San Gregório. Ao retornar definitivamente da América, o defensor dos índios viveu mais de sete anos nesse Colégio na vizinhança direta do Conselho de Indias. Hoje, San Gregório é Museu Nacional de Escultura. A diretoria do museu informa que, depois de ter encontrado duas ossadas do século XIX, as escavações foram suspensas. Ao que parece, nem aos dominicanos de Atocha, nem ao governo de Madrid, nem aos administradores de San Gregório interessa muito encontrar os restos mortais do apóstolo das Américas. "Também os mortos não estarão seguros diante do inimigo, se ele for vitorioso. E esse inimigo não tem cessado de vencer", lembra, com acerto, Walter Benjamin em sua sexta tese “Sobre o conceito de história”. Afinal, Las Casas não era só "defensor de índios". A Espanha o considera também fonte da "leyenda negra" que está ferindo seu orgulho nacional até hoje. As fontes históricas permitem a aproximação à origem do "tempo perdido" e descortinar, na memória ferida, horizontes de esperança. Esperança, enquanto cicatrização das feridas abertas, só é possível através de um trabalho de anamnese, metanóia, penitência e solidariedade. A solidariedade de quem está em paz com seu passado não tem fronteiras. Dom Tomás Beduíno, com seus 90 anos de idade, é uma dessas fontes históricas que curam a memória ferida e alimentam a esperança dos navegantes pela autenticidade provada na fornalha da longevidade. Herança Tomás Balduíno é dominicano como Bartolomé de las Casas, Francisco de Vitória e António de Montesinos. Com faro político-pastoral se tornaram defensores intransigentes dos povos indígenas. Mas nem todos os dominicanos são como Las Casas, Vitória e Montesinos. Também inquisidores receberam a sua formação na Ordem dos Pregadores (OP). A pregação do Evangelho pode cegar e iluminar. A ordem religiosa é uma família que, apesar das intervenções virtuais periódicas do fundador (exigidas ou admitidas) e das fontes estudadas no noviciado e relidas, mais tarde, nos retiros espirituais, não garante nada, mas facilita muito. Como na hora da Conquista, também na segunda metade do século XX, a família dominicana foi uma voz profética e inovadora da ação pastoral da Igreja Católica. Nessa fonte, Tomás Balduíno bebeu durante seus estudos na França, onde respirava uma nova teologia, a chamada Nouvelle théologie, decisiva para seu itinerário eclesial posterior. Essa nova teologia tinha fundamentos sólidos no passado, em Tomás de Aquino, xará de nome e confrade dominicano de Tomás Balduíno. A proximidade na defesa dos povos indígenas entre Las Casas e Tomás Balduíno tem uma raiz comum na teologia da Ordem dos Dominicanos. O primeiro período da teologia medieval foi a Patrística, que em Santo Agostinho (354-430), com base na filosofia de Platão, teve seu maior expoente. O representante gigante do segundo período, da Escolástica,foi Tomás de Aquino (1225-1274). Como professor em Paris e através dos Árabes, começa a conhecer e introduzir em sua reflexão Aristóteles, até então proibido na cristandade. Com grande simplificação pode-se dizer que Platão é o filósofo das ideias eternas de quem Agostinho se serviu para a construção de sua teologia, predominantemente, dedutiva. Aristóteles é o filósofo do chão concreto da realidade, da ciência e da ética prática. Tomás de Aquino se serviu de Aristóteles para uma teologia de cunho indutivo, articulada com a realidade concreta e palpável. Essa é a teologia que o Vaticano II assumiu, com seus pilares na história, sociedade e realidade político-econômica. Na conquista das Américas, essas duas correntes marcaram referenciais teológicos opostos que influenciaram diretamente no tratamento dos povos indígenas. Uns se apoiavam, em sua reflexão, no substrato agostiniano da “teologia das sentenças” do século XII, com sua visão teocrática do poder papal e seu olhar pessimista sobre a natureza humana; outros se serviram da posição jus-naturalista elaborada por Tomás de Aquino no século XIII. Ao mencionar os componentes da Junta de Burgos que, em 1512, elaborou uma legislação indigenista desfavorável aos povos indígenas, Las Casas menciona “o erro de Hostiensis” contido nessa legislação. O Hostiensis de Las Casas é Henrique de Susa (+1270), decretalista de Paris que defendeu a tese de que “pela vinda de Cristo ao mundo, ipso jure ou ipso facto, foram todos os infiéis privados de seus senhorios, jurisdições, dignidades, honras, reinos e estados”. Para refutar a tese de Hostiensis, Las Casas escreveu seu tratado “Sobre a única maneira de chamar todos os pagãos à verdadeira religião”. Na “teologia das sentenças” de Pedro Lombardo, por exemplo, havia certa confusão entre a ordem natural e a sobrenatural. Seguindo a tradição de Santo Agostinho (354-430) nas lutas contra o pelagianismo, que negava o pecado original e a necessidade do batismo das crianças, os sentencialistas atribuem ao pecado original uma influência que quase destrói a natureza humana. Daí provêm as exigências de um contrapeso na graça e no sobrenatural. A minimização do natural inspirou as interpretações teocráticas do poder pontifício, desde os tempos de Gregório VII (1073-1085). Já no século XIII, nas universidades de Paris, Bolonha, Oxford e Salamanca, nasce algo novo. Agora, por influência dos Árabes, Aristóteles é traduzido, e sua leitura ajuda a teologia a reconhecer os limites dos seus próprios campos. Tomás de Aquino faz, livremente inspirado por Aristóteles, avançar a reflexão teológica, quando começa a distinguir entre o natural e o sobrenatural, entre razão e fé. Como o natural não dispensa a graça (o sobrenatural), também a graça não destrói a natureza, mas a aperfeiçoa. O direito divino, que tem a sua origem na graça, não suspende o direito humano, que é de ordem natural. Na teologia agostiniana, que era a teologia hegemônica da Idade Média e na Conquista, a natureza pagã era uma natureza destruída pelo pecado original, e, portanto, sem possibilidade de salvação, a não ser, pelo batismo. Na teologia dos dominicanos, explicitado por Las Casas em seu Tratado de “Único modo”, a natureza dos povos indígenas não foi destruída pelo pecado original. Há uma continuidade entre a ordem de criação e de salvação. Tomás Balduíno nunca explicitou esse fundo teológico de sua herança que mais tarde daria a base de sustentação antropológica e teológica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Talvez por causa dos seus interlocutores, que eram índios, lavradores e movimentos sociais, ele se destacou mais por suas análises políticas que por reflexões teológicas. Mesmo nas Assembleias da CNBB, na época ainda realizadas em Itaicí, quando pediu a palavra, se ouviu um staccato político-pastoral certeiro e não o legato de uma fuga bachiana. Noite adentro, quando seus colegas jogavam pôquer ou tomavam uma cervejinha, Tomás, em off, era um articulador incansável e estrategista hábil. Para ele, a teologia tinha que ser prática, política, serva da práxis pastoral. O Vaticano II (1962-1965), que se definiu como concílio pastoral, veio ao seu encontro. Vaticano II Foram três grandes teólogos da família dominicana que se destacaram no Vaticano II e no tempo pós-conciliar: Marie-Dominique Chenu (1895-1990) e seus dois alunos, Yves Congar (1904-1995) e Edward Schillebeecks (1914-2009). Chenu e Congar chegaram à porta do Concílio, como a maioria dos teólogos relevantes da época, arrastados na corrente da suspeita e da proibição, condenados ao silêncio e exílio por um “regime de denunciação e de centralismo totalitário”, como escreve Congar em seu diário, um regime “sem justiça e sem misericórdia”. A coragem dos movimentos bíblicos, litúrgicos e pastorais foi – por longos anos pré-conciliares – acompanhada e estimulada pela coragem inovadora e a retidão intelectual de teólogos, como Chenu, que resistiram à perda da percepção da realidade no interior da Igreja. Com seu serviço teológico ao povo de Deus ultrapassaram as fronteiras da academia e do legalismo, e colocaram a sua vida profissional em risco. A reflexão teológica de Chenu, que era medievalista, contribuiu para a teologia indutiva do Concílio que reconheceu a “história”, a “realidade terrestre”, a “autonomia da cultura e ciência” e os “sinais dos tempos” como pilares que deveriam sustentar o conjunto teológico-pastoral do evento conciliar. Além da reflexão teológica indutiva focada na história e na sociedade, mais tarde assumida pela “Teologia Política”, de João Batista Metz, e a “Teologia de Libertação”, de Gustavo Gutierrez, Chenu estava, concomitantemente com a produção teológica, envolvido em trabalhos pastorais. Por longos anos foi assistente da Ação Católica e da pastoral operária. Esta presença pastoral, com seu método da “revisão de vida” (ver, julgar, agir), influenciou fortemente seus tratados teológicos. Nos anos pós-conciliares, a Pastoral da América Latina e seus documentos eclesiais se beneficiaram desse método indutivo, desde o papa João XXIII (1958-1963) assumido pelo magistério como um instrumento válido para a análise da realidade (cf. Mater et magistra, 235). A sobriedade missionária do movimento dos padres operários e da Mission de France, o despojamento de um Abbé Pierre (1912-2007), fundador do movimento dos maltrapilhos-construtores de Emaús, já apontaram para a opção pelos pobres e pelos que mais sofrem. Desde o início do século XX se tinha notícia do martírio e da opção corajosa pelos Outros de um Charles de Foucauld (1858-1916) e dos seus seguidores nos mais diversos movimentos espirituais e fundações religiosas. Em 1958, nove anos antes da chegada de Tomás Balduíno como bispo, as Irmãzinhas de Jesus iniciaram sua presença no meio do povo tapirapé e deram à igreja local de Goiás/GO lições de inculturação. Muitos anos antes do Vaticano II, quando Tomás Balduíno ainda concluiu seus estudos teológicos em Saint Maximin (1948-1950), a França era um laboratório pastoral criativo e sua Igreja, que era pobre, antecipava questões pastorais posteriormente articuladas pelos paradigmas da inserção, da inculturação e da opção pelos pobres e Outros. Com a teologia, que assumiu a realidade terrestre inserida na história da salvação e os sinais dos tempos, como sinais de Deus no tempo, no Vaticano II venceram Tomás de Aquino e sua corrente do Direito Natural. O Concílio declarou liberdade e pluralidade religiosas como direitos humanos que foram, antes do Vaticano II, consideradas inaceitáveis ou aceitáveis apenas como realidades de fato, mas não de jure, porque ao “erro” não se deve atribuir legalidade. A proximidade do mundo e dos reais problemas da humanidade, e o reconhecimento da autonomia da realidade terrestre e da pessoa são aprendizados históricos. Permanecem buscas permanentes para escapar da conformação alienante à prosperidade material e da adaptação superficial a modas e ondas, ou ao distanciamento deste mundo em nichos de bem-estar espiritual. Muitas questões que no Concílio pareciam ter encontrado um consenso, voltaram à tona no tempo pós-conciliar, marcado pela euforia pentecostal de pequenos grupos e pelo pessimismo autoritário de certo neoagostinianismo. Novamente, a liberdade religiosa em sua forma de pluralismo religioso é questionada como uma “teoria de índole relativista” que se pretende justificar “não apenas de facto, mas também de jure (ou de princípio)”. Num mundo de grandes mudanças, um setor significativo da Igreja Católica corre o risco de reduzir o aggiornamento de João XXIII a uma modernização conservadora norteada pela pergunta: “Como podemo-nos adaptar ao mundo sem transformar nossas estruturas pastorais caducadas”? Ao protelar a “conversão pastoral”, proposta por Aparecida (DAp 365ss), a chamada Nova Evangelização corre o perigo da encenação de uma peça antiga, que precisa e pode ser reescrita. Contexto No oitavo ano da ditadura militar no Brasil, cinco anos depois da extinção do “Serviço de Proteção aos Índios/SPI” por corrupção, sadismo e massacres de tribos inteiras, quatro anos depois de Medellín e do Ato Institucional n. 5, no terceiro ano do terceiro general-presidente, Emílio Garrastazu Médici, no período mais repressivo da história do Brasil, e um ano depois das denúncias do “espírito faraônico das missões”, pelos antropólogos de Barbados I, naquele ano de 1972 - quando os Estados Unidos retiram as suas tropas do Vietnam, - quando em Estocolmo se realiza a Primeira Conferência do Meio Ambiente, - quando o conflito do Oriente Médio alcança os Jogos Olímpicos, em Munique, onde oito palestinos fazem 11 reféns entre os integrantes da comitiva de Israel, exigindo a libertação de 200 Feddayns, presos em Telaviv (11 reféns e cinco palestinos mortos); naquele ano de 1972 - quando a Doutrina da Segurança Nacional dos Estados Unidos criou uma insegurança total na América Latina, - quando a Transamazônica (BR 230) que vai destruir 29 territórios indígenas, é inaugurada e celebrada como símbolo do desenvolvimento e do “milagre brasileiro”, - quando a TV brasileira passa a transmitir suas imagens censuradas em cores; naquele ano de 1972 um pequeno grupo de 25 missionários e missionárias, convocados pelo Secretário geral da CNBB, Dom Ivo Lorscheiter, se reúne em Brasília para discutir o projeto de Lei n. 2328 que tramitava na Câmara e dispunha sobre o Estatuto do Índio. Ao convocar esse grupo missionário, pensou-se, na CNBB, criar uma assessoria ligada às bases missionárias que deveria observar a política indigenista do governo e promover o aggiornamento missionário da Igreja Católica. Havia preocupações concretas: as denúncias feitas na Declaração de Barbados I (1971) , a insatisfação dos missionários com a pastoral neocolonial e não específica junto aos povos indígenas, as denúncias sobre matanças de índios. Em 1969, apareceram no exterior notícias sobre o genocídio dos índios no Brasil, inclusive com fotos de índios torturados. Em 1970, veio ao País uma comissão da Cruz Vermelha para investigar os casos documentados com fotos de índios torturados. A “pacificação” dos Cinta-Larga ocupou, desde 1969, as manchetes dos jornais. A construção das rodovias BR 230 (Transamazônica), 174 (Manaus-Boa Vista), 163 (Cuiabá-Santarém), 364 (Cuiabá-Porto Velho) e 210 (Perimetral Norte) projetou suas sombras sobre dezenas de povos indígenas na Amazônia. O órgão da política indigenista do Estado, a Fundação Nacional do Índio (Funai), teve a incumbência de garantir que os índios não representassem obstáculo à política desenvolvimentista. O povo nambikuara foi vítima exemplar do descaso da política indigenista da época. A Funai, com seu presidente general Bandeira de Melo, retirou os índios de seu território, que então seria atravessado pela BR-364. A seguir, emitiu certidões negativas – atestados de que na região do vale do Guaporé não havia mais índios – , e a Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) chamou, através de incentivos fiscais, as firmas colonizadoras. Os Nambikuara, no entanto, voltaram para seu habitat. Entre 1968 e 1979, o vale do Guaporé foi distribuído entre 22 firmas agropecuárias. No Natal de 1971, equipes da Força Aérea Brasileira (FAB) e da Funai tiveram de resgatar de helicóptero os índios dispersos pelo vale. Os que escaparam da fome tiveram sarampo. Na epidemia, morreu toda a população Nambikuara menor de 15 anos. A notícia da "Biafra brasileira" correu pelas manchetes dos jornais. O grupo convocado por Ivo Lorscheiter se constituiu em “Conselho”, oficiosamente ligado à CNBB. A ata da primeira reunião desse Conselho, escrita a 23 de abril de 1972, por Dom Geraldo de Proença Sigaud, um dos ferrenhos contestadores do Vaticano II e então bispo de Diamantina (MG), foi assinada por outros 25 participantes, entre eles os bispos Ivo Lorscheiter (secretário-geral da CNBB), Henrique Froehlich (Diamantino, MT), Luís Gomes de Arruda (Guajará-Mirim, RO), Eurico Kräutler (Altamira, PA), Pedro Casaldáliga (São Félix, MT), Tomás Balduíno (Goiás, GO), Estêvão Cardoso de Avelar (Marabá, PA) e os missionários Tomás de Aquino e Sílvia Wewering. Foi o nascimento do Cimi, dez anos depois do início do Concílio Vaticano II. Os participantes do primeiro encontro ainda elegeram sete membros como primeiros conselheiros estatutários do Cimi: os padres Adalberto Holanda Pereira, jesuíta; Casimiro Beksta, salesiano; Thomaz de Aquino Lisboa, jesuíta; irmã Sílvia Wewering, das Servas do Espírito Santo e D. Tomás Balduíno Ortiz. Os padres Ângelo Jaime Venturelli, salesiano, e José Vicente César, do Verbo Divino, foram respectivamente eleitos presidente e secretário do Cimi. A presença de D. Tomás Balduíno para a transformação desse grupo heterogêneo numa pastoral profética pró-índio, era essencial. O que facilitou a sua tarefa foi o fato de que na hora da fundação do Conselho Indigenista Missionário (1972), a Igreja latino-americana já tinha feito a sua leitura do Vaticano II com os olhos de Medellín (1968): assumir a realidade dos pobres, presença nessa realidade (inserção), articulação dos sujeitos que vivem nessa realidade, alianças com Igrejas e movimentos fora do País que estava atravessando anos de ditadura militar colada em certa euforia desenvolvimentista na contramão dos povos indígenas no Brasil e na maioria dos países do continente. Desde o início, o Cimi se colocou na contramão das políticas hegemônicas daquela época. Profeticamente rejeitou a integração dos povos indígenas na sociedade nacional como destruição de sua alteridade. Essa visão de um futuro dos povos indígenas, diferenciado da cultura hegemônica, membros do Cimi formularam cedo num documento programático: “Y Juca Pirama – O índio aquele que deve morrer” (1973), um documento que se tornou guia antropológico-pastoral do Cimi: Nada faremos em colaboração com aqueles que visam 'atrair', 'pacificar' e 'acalmar' os índios para favorecerem o avanço dos latifundiários e dos exploradores de minérios (...). Nosso trabalho não será 'civilizar' os índios. Estamos convencidos, como o grande precursor Bartolomeu de las Casas, que muitas lições eles nos podem dar(...). Chegou o momento de anunciar, na esperança, que, aquele que deveria morrer é aquele que deve viver. Dom Tomás nunca chegou a ser presidente do Cimi, mas continua até hoje como sua “eminência parda”, patriarca, conselheiro e amigo. A ruptura com o sistema de acumulação e de injustiça não depende do pastor, mas se torna mais viável com ele. Sua missão é “despertar esperança em meio às situações mais difíceis, porque, se não há esperança para os pobres, não haverá para ninguém” (DAp 395). Virada pastoral A conversão do grupo solto numa entidade articuladora e profética de missionários e missionárias aconteceu também pela intervenção da realidade indígena numa pastoral até então mais orientada para a transmissão de doutrinas catequéticas e obras de caridade. Na época da fundação do Cimi, em 1972, a sociedade brasileira e as Igrejas locais não acreditavam na possibilidade de os povos indígenas virem a ter futuro próprio, como povos e nações. Parecia lógico que o caminho indicado para o futuro dos 90 mil (segundo dados do governo militar da época) ou 180 mil índios, segundo o recenseamento do Cimi de então, seria a sua integração aos padrões culturais e jurídicos da sociedade nacional e a sua assimilação étnica e religiosa. A perspectiva de integração dos índios na sociedade classista dispensaria a demarcação de suas terras e a sua proteção específica; a perspectiva de sua conversão dispensaria o diálogo inter-religioso e a inculturação. Foi neste contexto de construção de estradas e de descrença no futuro dos povos indígenas que o Cimi iniciou seu trabalho, propondo a ruptura com o modelo desenvolvimentista em marcha. Assumiu uma pastoral específica, integral e amplamente articulada. Uma solução justa para a questão das terras dos povos indígenas exigiria mudanças profundas dos modelos econômico e sociopolítico vigente, com seus pilares de acumulação, aceleração e autoritarismo. Essa opção causou conflitos, não somente nas relações com o Estado, mas também no interior das Igrejas locais. O Cimi começou com um ato de fé no futuro dos povos indígenas e se aconselhou com eles. Quantas vezes recorremos, no Cimi, aos próprios destinatários da pastoral indigenista com a pergunta: “Em que podemos servir? Desde 1974, o Cimi facilitou encontros e assembleias entre lideranças indígenas do Brasil e, mais tarde, de outros países latino-americanos. Esses encontros foram geradoras de esperança. A esperança nasce quando as vítimas aprendem a falar, agir, organizar; quando a Igreja local se faz presente no meio do povo, rejeita o próprio protagonismo e abre mão de privilégios e prestígio, acompanha os processos de organização, ajuda a expulsar o sentimento da incapacidade e se empenha em transformar desejos alienantes. A Missão Anchieta, em Diamantino (MT), foi o palco da primeira dessas assembleias de líderes indígenas. De 17 a 19 de abril de 1974, 16 chefes indígenas, representando os povos Apiaká, Kayabi, Tapirapé, Rikbaktsa, Irantxe, Paresi, Nambikuara, Xavante e Bororo, participaram do encontro. Seguiram inúmeras dessas assembleias. A luta contra a falsa emancipação, no governo Geisel, em 1978, fez surgir várias entidades em defesa da causa indígena, entre elas, a Associação de Apoio ao Índio (Anaí), Grupos de Estudo, Comissões Pró-Índio e o Centro de Trabalho Indigenista. Durante a Semana do Índio, de 1980, em Campo Grande (MS), surgiu a ideia de se criar uma "Irmandade Indígena", que veio a constituir-se sob a denominação “União das Nações Indígenas/UNI. Quando a UNI procurava, através de sua coordenação em Brasília, representar os povos indígenas em âmbito nacional, ocorreu certa desarticulação no interior do movimento indígena. Surgiram questões da representatividade, da legitimidade, do distanciamento das bases, da desvinculação das próprias raízes culturais, de grandes estruturas e projetos e do estrelismo de lideranças. Entre 1985 e 1988 surgiram várias organizações indígenas locais, que produziram avanços significativos na Constituição Federal do Brasil de 1988. Com a realização da Primeira Assembleia dos Povos Indígenas da Amazônia, em 1989, nasceu a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), que em pouco tempo se tornou referência para a política indigenista no Brasil e no exterior. A partir de 1992, em âmbito nacional, a UNI cedeu lugar ao Conselho de Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Brasil (Capoib), na época mais ligado às bases e organizações regionais existentes. Em 1995, o Capoib realizou sua Primeira Assembleia Geral, já com a participação de 203 representantes de 76 povos e de 40 organizações. A organização anual do Acampamento Terra Livre representa um marco importante do protagonismo do movimento indígena. Em 2005, nesse Acampamento Terra Livre se constituiu a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Em 2006, foi instalado pelo então presidente Lula o “Conselho Nacional de Política Indigenista/CNPI”, em que os indígenas têm 20 vagas, o governo 14 e organizações indigenistas, entre eles o Cimi, duas. O Conselho tem uma função propositiva e não decisiva, como o movimento indígena queria. Hoje, participação é uma palavra chave na construção de uma democracia menos representativa e mais direta. De certa maneira, o problema da participação existe também no interior da Igreja universal e local. Contudo, as Assembleias dos povos indígenas, suas organizações e articulações produziram uma “virada pastoral” da Igreja Católica, da supervisão à assunção do protagonismo dos povos indígenas. As Assembleias do Cimi, seus documentos e, finalmente, seu Plano Pastoral procuravam assumir o grito dos povos indígenas de uma maneira imprevisível, 40 anos atrás. E essa escuta foi transformada em linhas de ação. No decorrer das Assembleias Nacionais do Cimi aparecem as seguintes prioridades e linhas de ação: terra/território, autodeterminação (movimento indígena, aliança, autosustentação), cultura como projeto de vida (encarnação, inculturação, presença, testemunho), formação, políticas públicas, diálogo inter-religioso e ecumenismo, diaconia e anúncio. Trinta anos depois da fundação do Cimi, a Campanha da Fraternidade 2002, com o tema “Fraternidade e povos indígenas” e o lema “Por uma terra sem males”, pode ser compreendida como gesto de assunção e reconhecimento da causa da pastoral indigenista do Cimi pelo conjunto da CNBB e da Igreja do Brasil. Os princípios, que desde o início fundamentaram a ação do Cimi e condensaram a “virada pastoral, foram: a) o respeito à alteridade indígena em sua pluralidade étnico-cultural e histórica e a valorização dos conhecimentos tradicionais dos povos indígenas; b) o protagonismo dos povos indígena sendo o Cimi um aliado nas lutas pela garantia dos seus direitos históricos; c) a opção e o compromisso com a causa indígena dentro de uma perspectiva mais ampla de uma sociedade democrática, justa, solidária, pluriétnica e pluricultural. Testemunhas Desde sua origem, a história do Cimi é marcada por testemunhas qualificadas. Muitas lideranças indígenas, missionários e missionárias foram assassinados neste tempo pós-conciliar. Em 15 de julho de 1976, um ano despois de sua primeira Assembleia Nacional, Simão Bororo caiu ao lado de Rodolfo Lunkenbein, missionário salesiano. Lunkenbein, desde 1973 conselheiro do Cimi, estava empenhado na demarcação da terra dos Bororo. Foi assassinado por fazendeiros no pátio da aldeia de Meruri. João Bosco Burnier, missionário jesuíta que atuou ao lado dos Bakairi, foi morto, em 11 de outubro de 1976, na delegacia de Ribeirão Bonito (MT), onde socorria mulheres torturadas pela polícia. Em 26 de dezembro de 1979, Ângelo Pereira Xavier, cacique Pankararé de Brejo do Burgo, no norte da Bahia, foi assassinado. Em 29 de janeiro de 1980, Ângelo Kretã, líder Kaingang de Mangueirinha (PR), foi emboscado, depois de ter recebido ameaças de morte. Em 10 de julho de 1983, Alcides do povo maxakali foi assassinado a golpes de facão, por José Rolinha, vaqueiro do fazendeiro Laurindo, quando regressava para sua aldeia, no nordeste de Minas. No dia 25 de novembro de 1983, foi assassinado o líder guarani, Marçal Tupã-y, na farmácia da aldeia de Campestre (MS). Em 28 de abril de 1985, foi assassinada a coordenadora do sub-regional Purus do Cimi Norte I, irmã Cleusa Rody Coelho, missionária da comunidade das Agostinianas Recoletas de Lábrea (AM). Com ela, foram assassinados os índios Apurinã Maria e Arnaldo. Em abril de 1987, foi assassinado Vicente Cañas, irmão jesuíta. Seu primeiro contato com os índios foi com o povo indígena “Beiço-de-Pau”, que estava entre os rios Sangue e Arinos, ao norte do Estado de Mato Grosso. Por causa de um contato mal feito pela Funai, em 1969, foram dizimados de mais de 600 que eram, a 40 indivíduos. Cañas cuidou da saúde dos 40 sobreviventes. Depois conviveu por cinco anos com o povo Pareci, no noroeste de Mato Grosso. Em 1971, participou do primeiro contato com o povo Mynky, na época apenas 23 pessoas. Em 1974, participou dos primeiros contatos com os Enawene-Nawe, no rio Juruena, com uma população de 100 pessoas. Vicente participava dos seus trabalhos e rituais, era enfermeiro, mecânico, pescador e dentista. Os índios o adotaram como filho e parente. Nos últimos 10 anos de sua vida, Vicente viveu inteiramente inserido na vida do povo Enawene-Nawe. No processo que levaria, em 1996, à demarcação da terra desse povo foi assassinado e, um mês depois, encontrado morto, em 16 de maio de 1987, ao lado do seu barraco na margem esquerda do rio Juruena. Contrariando com sua presença a cobiça por terra e madeira, Vicente sabia que estava jurado de morte. Os próprios índios o haviam alertado: “Se cuida. As picadas dos jagunços já estão perto do teu barraco”. Por causa do assassinato de Vicente Cañas foram indiciados os fazendeiros Pedro Chiquette e Carlos Camilo Obici, o ex-delegado da polícia civil na cidade de Juína (MT), Ronaldo Antônio Osmar, na ação penal apontado como um dos mandantes do crime, e Martinez Abadio e José Vicente como executores do crime. Depois de ser periciado pelo IML do Estado de Mato Grosso, o crânio do missionário foi enviado para novas perícias ao IML do Estado de Minas Gerais. De lá, em 1989, o crânio do Ir. Vicente desapareceu misteriosamente. Depois foi encontrado por um engraxate de sapatos, numa caixinha que declarava seu conteúdo, perto da rodoviária de Belo Horizonte, fato até hoje não explicado. No dia 28 de março de 1988, em operação planejada e de extrema brutalidade, 14 índios Tikuna, no Alto Rio Solimões (AM), foram assassinados. A invasão garimpeira do território Yanomami em Roraima vitimou, entre 1987 e 1993, mais de 1.500 índios. Na madrugada do dia 20 de abril de 1997, Galdino Jesus dos Santos, Pataxó Hã-hã-háe, de Pau Brasil (BA), foi queimado vivo por quatro adolescentes de Brasília. Em 20 de maio de 1998, Chicão, cacique do povo Xukuru de Ororubá, no município de Pesqueira (PE), foi assassinado. Apesar de assassinatos e criminalização permanentes de lideranças indígenas, os povos indígenas continuam com suas reivindicações territoriais que são a condição de sua sobrevivência. No dia 18 de novembro 2011, foi assassinado o cacique Nísio Gomes num ataque ao acampamento indígena Guayviry, situado no município de Aral Moreira/MS. O ataque foi promovido por fazendeiros e uma empresa de segurança privada de Dourados/MS. Finalmente, em fins de julho 2012 foram indiciados 23 pessoas pelos crimes de homicídio qualificado, ocultação de cadáver, fraude processual e corrupção de testemunhas. Faz vários anos que o presidente do Cimi, D. Erwin Kräutler, bispo prelado de Xingu, no Pará, jurado de morte pelos inimigos da causa indígena, é obrigado a visitar as aldeias indígenas e viver em sua casa de Altamira protegido por dois guarda-costas. Sua trajetória missionária nos lembra do acidente produzido na Transamazônica como “troco” por sua luta, como presidente do Cimi, por uma Constituição cidadã que leve em conta dignidade e direitos dos povos indígenas. Nas lutas por essa Constituição, o Cimi foi vítima de uma campanha difamatória do jornal O Estado de São Paulo, em 1987. Mas o Cimi foi vigorosamente defendido pela CNBB na pessoa de seu presidente, o saudoso Dom Luciano Mendes de Almeida. Com a mobilização indígena em torno da Constituinte, em 1988, foram obtidas conquistas constitucionais importantes, que modificaram as bases jurídicas da relação do Estado com os povos indígenas. O processo organizativo deu consistência às lutas dos povos indígenas em todo o País pela retomada de suas terras, com resultados significativos. Apesar dos desafios que permanecem, a população indígena voltou a crescer. Muitos povos reassumiram suas identidades étnicas. Passadas décadas, às vezes, séculos, eles voltaram a aparecer, reivindicando seus territórios e seu nome próprio. A partir da sua memória histórica, forjada numa longa resistência, esses povos têm conseguido recuperar sua identidade e redesenhar seu projeto de vida. Nessa trajetória de 90 anos, muitas sementes, que o confessor Balduíno e Las Casas Redivivo lançaram, se multiplicaram nos corações e territórios dos povos indígenas. Nenhum inverno político ou eclesiástico conseguiu sufocá-los por baixo de um cobertor de gelo neoliberal ou neoagostiniano. Hoje, somos testemunhas de uma pastoral indigenista que aprendeu que a catequese a serviço da Vida passa pela questão da terra, da cultura e da participação política. Somos testemunhas de uma pastoral que devolveu o protagonismo da causa indígena aos próprios indígenas, sem jamais abandonar a sua causa.

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