quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Missão Amazonas.

Disponibilidade para itinerar por onde não quero! . “Dediquem-se a andar pela Amazônia. Visitem as comunidades, as igrejas locais, as organizações. Observem tudo cuidadosamente e escutem atentamente o que o povo fala: seus apelos e esperanças, seus problemas e soluções, suas utopias e sonhos. Participem da vida cotidiana do povo. Observem e registrem tudo o que o povo fala, com suas próprias palavras. Não se preocupem com os resultados, o Espírito irá mostrando o caminho.” E abrindo o mapa da Amazônia onde estávamos iniciando o trabalho (3,3 milhões de Km2!), com um grande sorriso, Cláudio concluiu: “Coragem! Comecem por onde possam!” “Andem pela Amazônia... e escutem atentamente o que o povo fala...” Para o Cláudio era fundamental andar e ir ao encontro do povo, de modo simples, para poder “ver, ouvir e sentir” seus clamores, suas utopias e sonhos... Com um “pé dentro” dos espaços eclesiais e outro “pé fora”, nos espaços mais leigos para descobrir as sementes do Reino espalhadas pelo mundo afora. Esta era a própria vida do Cláudio nos anos que esteve como superior do Distrito dos Jesuítas da Amazônia: Passava as manhãs da sexta feira ouvindo, aconselhando e confessando as prostitutas(os), os bêbados e o pessoal de rua na Catedral de Manaus e algumas tardes da semana visitava as famílias que moravam nas palafitas do Igarapé São Jorge junto a sua casa. “Participem da vida cotidiana do povo. Observem e registrem tudo...”. No cotidiano da vida se descobrem com maior clareza os projetos políticos que sustentam a vida do povo e se descobrem as “sementes escondidas”, carregadas de esperança que projetam o novo. Por isso, Cláudio sempre insistia na importância de participar não tanto nos momentos e acontecimentos “especiais” das comunidades, mas sobretudo, no cotidiano da vida das mesmas: pescar com eles, trabalhar no roçado com eles, ralar mandioca e preparar farinha com as mulheres, etc. E sempre Cláudio nos motivava a registrar com fidelidade (nos “relatórios de campo”) as falas do povo, seus sonhos e lutas para poder captar e entender suas lógicas e projetos de vida e assim, apoiá-los melhor na sua caminhada. “Não se preocupem com os resultados, o Espírito irá mostrando o caminho.” Depois de cada itinerância (de mais de um mês), Cláudio nos juntava para discernir tudo o que tínhamos visto e ouvido. “Não somos uma fábrica de lingüiça”, dizia, por isso não devemos estar pressionados pelos resultados produtivos... O mais importante é discernir por onde o Espírito nos convida a avançar e confiar em que Ele irá mostrando o caminho. “Coragem! Comecem por onde possam!” Cláudio não se encolhia frente aos grandes desafios... Animava-nos a enfrentá-los pondo tudo da nossa parte, mas com a confiança absoluta de que tudo dependia de Deus, de que era Deus quem nos conduzia na missão nesta Amazônia. Porém, eu fiquei encolhido frente a esta nova proposta! Lembro quando Cláudio nos abriu o mapa da gigantesca região (3,3 milhões de Km2!), literalmente encolheram-se-me as entranhas. Levei um susto olhando o gigantesco mapa amazônico com uma rede fluvial de milhares de kilómetros de rios. Dentro de mim ressoavam fortemente suas palavras: “Comecem por onde possam!”... Dizia a mim mesmo: “deve ser uma brincadeira!” e me sentia confundido, eu que com tanto esforço e dor tinha saído de meu pequeno e querido territorio. Frente àquela proposta que me superava, pedi a Cláudio que me desse um mês para discernir. Ele, muito respeitoso como sempre e animando-me ao ver-me assustado, me deu todo o tempo necessário… Durante aquele mês, cada manhã no terraço da comunidade desde onde se vê em panorâmica a cidade, minha oração foi pedir-lhe forças ao Senhor e coragem para, simplesmente, abrir o mapa da Amazônia, olhá-lo e acolhê-lo com carinho e paz… Os primeiros dias não o conseguia… As entranhas se me encolhiam frente a tamanho desafio. Muitas vezes me surpreendia a mim mesmo dizendo em voz baixa: "Este homem está louco!” Pouco a pouco, com a ajuda do Senhor e o ânimo que Cláudio, carinhosa e respeitosamente me dava a cada dia, senti que Deus me convidava a confiar e a enterrar-me, como Cláudio, naquela missão totalmente nova e que me desbordava em todos os sentidos. Interiormente comecei sentir o convite: “Enterra-te e confia! Eu, o Deus da Vida, serei propício na Amazônia!” “Tomai, Senhor, e recebei toda a minha liberdade...” As minhas últimas conversas com Cláudio se deram na noite do 1 ao 2 de Agosto de 2008, quando o internamos de urgência, pois a quimioterapia o tinha deixado muito debilitado. Um momento muito intenso foi na meia noite, quando nos mudaram do hospital de urgências para o hospital central da Unimed. Ao chegar ao novo hospital, depois de serem feitos os controles de rotina, Cláudio me segurou na mão e me perguntou se sabia a oração de Santo Inácio. Depois me pediu que rezasse devagar, estrofe por estrofe: “Tomai, Senhor, e recebei toda minha liberdade…” A cada estrofe me apertava a mão para que parasse e em voz baixa ele a repetia várias vezes... Depois me voltava a apertar a mão para que continuasse com a seguinte estrofe: “e a minha memória também...”. Ele rezava com devoção enquanto seus olhos se banhavam em lágrimas. Depois adormeceu por um tempo. Eu o acompanhava chorando como uma criança… “Ofereço tudo para que os povos indígenas tenham vida e seus direitos respeitados” O último momento de partilha com Cláudio foi ao amanhecer. Contei-lhe que viajaria no dia seguinte para o Peru. Recordei-lhe novamente que durante a viagem falaríamos com os três bispos da tríplice fronteira sobre a proposta da comunidade interprovincial naquela fronteira e que ia para o encontro da rede de jesuítas que trabalhamos junto aos povos indígenas na América Latina, que o encontro seria no Alto Maranhão, em Santa Maria de Nievas e que tentaríamos entrar pelo rio, por São Borja e o Pongo de Manceriche. Atento me escutou e logo me falou com firmeza: “Diz-lhes que rezo e ofereço tudo para que os povos indígenas tenham vida e seus direitos respeitados”. Olhamos-nos intensamente e apertamos as nossas mãos fortemente. Disse-lhe: “Velho, agüenta até à volta, que temos muitas coisas de que falar”. Serenamente sorriu emocionado. Os dois sabíamos que nossos encontros e conversas já seriam noutro plano… “Disponibilidade de andar por onde não quero” Por último, quero recolher as notas do Cláudio que sua irmã encontrou entre seus papeis e enviou para sua recordação de um ano da partida: “Termino os Exercícios Espirituais na intimidade consoladora de Jesus: `Cláudio, tu me amas?´ Claro, permanece um pouco de tristeza, pois meu o amor é fraco e limitado. Mas Jesus faz a parte dele”. “Um outro apelo de Jesus agora que sou velho é a disponibilidade de `andar onde não quero´. Sem me preocupar. Somente seguindo Jesus. Siga-me!” Agora Cláudio “ITINERA” plenamente conosco por toda a Amazônia, por suas selvas e rios. Agora nos acompanha e anima mais intensamente na missão de tecer nosso corpo apostólico nas “fronteiras” desta imensa Amazônia. Convida-nos e cutuca-nos para desinstalar-nos e para “itinerar por onde não queremos!” 2. Itinerância do Pe. Geral Adolfo Nicolas sj pela Amazônia Apenas um mês após da partida do Cláudio, em setembro de 2008, o Pe. Adolfo, recentemente escolhido como novo Geral da Companhia de Jesus, fez sua primeira itinerância na Região dos Jesuitas da Amazônia (BAM). Inicialmente participou da Conferência dos Provinciais Jesuitas da América Latina (CPAL) realizada em Manaus. Depois, o Pe. Adolfo esteve itinerando durante vários dias pelas comunidades e obras nas que colaboramos os jesuitas na região amazônica. Quatro palavras muito significativas ficaram em mim gravadas das conversas e palestras do Pe. Adolfo. Penso que elas iluminam muito o estilo de vida e missão que o mundo hoje exige e em particular à Equipe Itinerante. “Duas decisões fundamentais: Tomar a primeira decisão e mantê-la!” No dia 29 de setembro o Pe. Adolfo esteve visitando a Comunidade Itinerante na área de palafitas do igarapé de São Jorge. A visita era prevista para uma hora, porém se prolongou por mais de duas... O Pe. Adolfo visitou algumas das famílias do bairro e depois conversou longamente com as companheiras e companheiros da Equipe Itinerante onde estavam representantes dos núcleos de Manaus, Tabatinga e Roraima. A conversa foi muito simples, agradável e profunda. O Pe. Adolfo perguntou amplamente pelo estilo de vida e missão itinerante, pela dimensão interinstitucional da equipe, pela relação com os vizinhos, pelos desafios e dificuldades mais fortes que como Equipe Itinerante sentimos... Depois de ter visto e ouvido, no final da visita, o Pe. Adolfo nos comenta: “Vocês tomaram duas decisões fundamentais. A primeira foi discernir e decidir morar inseridos aqui, entre os mais pobres, e trabalhar juntos interinstitucionalmente nesta missão itinerante na pan-amazônia. A segunda decisão importante que vocês fizeram foi, a pesar das dificuldades e incompreensões, manter a primeira decisão”. Todas as companheiras(os) da Equipe Itinerante ficamos encantados e confirmados na missão com a partilha simples, fraterna e profunda do Pe. Adolfo. “A casa onde moram é como a casa dos vizinhos?” No dia seguinte, 30 de setembro, o Pe. Adolfo teve um encontro de confraternização com todos os jesuitas de Manaus para ouvir e conhecer algumas outras obras e trabalhos e também dar-nos sua palavra. Depois de ser apresentada uma nova missão iniciada no norte da região, o Pe. Adolfo perguntou com simplicidade: “A casa onde vocês moram é igual às casas dos outros vizinhos?” A resposta foi que não! E o Pe. Geral voltou a perguntar: “Os vizinhos visitam sua casa como visitam as casas dos outros vizinhos?” Também a resposta foi que não! Sem comentários! “Chamados a atravessar as fronteiras nos dois sentidos...” Na região amazônica, também no mundo todo, os jesuitas estamos chamados a entrar e atravessar as fronteiras, onde as feridas estão mais abertas. Dizia-nos o Pe. Adolfo que atravessar as fronteiras exige arriscar, “despir-nos” de nossas “velhas roupas”, esquemas e lógicas; exige passar de nossa “monocultura” a uma “ecologia de culturas” com sua diversidade de lógicas e espaço-temporalidades. Só assim é possível captar e compreender a novidade que se encontra no outro lado da fronteira e que o “outro diferente” nos oferece. Porém, não basta atravessar a fronteira num único sentido (“sair”). Há que fazer o esforço por voltar (“entrar”) e traduzir em categorias compreensíveis a novidade encontrada ao outro lado da fronteira... Só assim poderemos ir avançando, des-construindo os velhos modelos que não respondem mais aos novos e grandes desafios que a Amazônia e o mundo vivem hoje. “Usar mais o outro hemisfério do cérebro...” Por último, o Pe. Adolfo, com sua característica afabilidade e humor, nos convidou como Jesuitas a utilizar o outro lado do cérebro para apreender a integrar na nossa missão uma outra lógica mais circular e simbólica, menos linear, mais feminina e integral, como a que têm os povos amazônicos e os povos orientais com quem ele trabalhou por longos anos. 3. Para continuar itinerando por “onde não queremos...” Penso que nos tempos que vivemos as palavras do Pe. Cláudio e do Pe. Adolfo podem encorajar-nos e iluminar nosso modo de vida e missão, para continuar itinerando com disponibilidade e generosidade pela Amazônia e pelo mundo. Itinerar “por onde não queremos: com quem ninguém quer estar, como ninguém quer estar, onde ninguém quer estar”. Eles nos animam a voltar ao caminho do “Peregrino”, a recuperar a “Cavalaria Ligeira” para equilibrar a “Artilharia Pesada” e assim dinamizar com maior agilidade nossa vida e missão. Obrigado Pe. Cláudio e obrigado Pe. Adolfo por continuar encorajando-nos na missão de itinerar pelas “fronteiras”, geográficas e simbólicas, onde as feridas da humanidade e do planeta estão mais abertas, na promoção da fé e da justiça sócio-ambiental para todos e para amanhã (não só para uns quantos e para hoje). Obrigado por animar-nos a estar disponíveis para “andar por onde não queremos” e, com Inácio, “Vagar em puro serviço de seu Pai Eterno” (Exercícios Espirituais 135).

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