quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Maria Magdalena, capítulo II

IHU On-Line – Como Maria Madalena nos ajuda a pensar a liderança das mulheres na Igreja e na sociedade de hoje? É possível chegar à igualdade de gênero na Igreja Católica?
Chris Schenk – Talvez o aspecto mais importante da recuperação da memória histórica da liderança de Santa Maria de Magdala é que as fiéis contemporâneas podem, pela primeira vez, se ver nas histórias do Evangelho e na história da Igreja primitiva.
Quando eu era criança, eu tinha a impressão, assim como quase todo mundo que eu conhecia, que era Jesus e os 12 homens que viajavam ao redor da Galileia fazendo o bem. Eu nunca via ninguém que se parecesse comigo nos Evangelhos. As mulheres pareciam ser todas as prostitutas, pecadoras, habitadas por demônios ou uma Mãe virgem. Nenhum desses modelos a serem seguidos era muito atraente. Fiquei escandalizada quando eu descobri, por meio dos meus estudos bíblicos, que Maria de Magdala foi a primeira testemunha da Ressurreição e que não há nada nas Escrituras que sustente a ideia de que ela era uma prostituta. Parecia uma grande injustiça o fato de ser assim que uma grande mulher de fé como ela era lembrada na história da Igreja, pelo menos na Igreja latina. E eu resolvi fazer algo a respeito.
Então, se nós, como Igreja, podemos começar a ver que Jesus (e mais tarde São Paulo) incluiu mulheres que eram líderes no seu discipulado mais próximo, isso leva à pergunta: “Bem, por que a Igreja não pode incluir mulheres como líderes hoje?”. Atualmente, a Igreja ensina que as mulheres são iguais. No entanto, nenhuma estrutura da Igreja lhes permite exercer essa igualdade de forma alguma. Só homens podem eleger o Papa, liderar dioceses, pastorear paróquias e pregar na Missa. Isso é uma grande perda para a comunidade de fiéis, já que necessariamente sempre ouvimos o Evangelho através da lente da experiência masculina. Estamos perdendo a oportunidade de ouvir as grandes verdades da nossa fé através das lentes da experiência feminina.
Todas as decisões na governança da Igreja exigem a ordenação, e a Igreja ensina que as mulheres não podem ser ordenadas. Portanto, temos ensinamentos conflitantes aqui. Eles não podem estar ambos certos. É por isso que eu acredito que, no fim, teremos a igualdade feminina na Igreja. Mas será uma longa luta e ela só virá através da graça de Deus em ação, convertendo os homens tomadores de decisão (lembre-se, até São Paulo se converteu) e sustentando as dezenas de milhares de mulheres e homens que trabalham para essa igualdade de muitas e variadas formas nos nossos dias.

IHU On-Line – Como vimos, é impossível entender Maria Madalena sem levar em conta sua relação com Jesus. O que sabemos sobre a relação de Jesus com as mulheres em geral? Que sementes de “mística feminina” já estão presentes na vida de Jesus ou na vida das mulheres que o seguiram?
Chris Schenk – Isso é algo interessante para se refletir. A partir dos Evangelhos, vemos que Jesus tinha muitas amizades com mulheres, e não apenas com Maria de Magdala. Certamente, Maria e Marta de Betânia eram amigas queridas, semelhante a uma família para ele. Maria de Betânia assumiu o papel de estudante rabínico (tradicionalmente reservado aos homens), sentando-se aos pés de Jesus para ouvir e aprender. Ele se recusou a mandá-la embora, não obstante Marta tenha protestado. “Maria escolheu a melhor parte e esta não lhe será tirada”, diz Jesus (Lucas 10, 38-42). O Evangelho de João mostra Marta fazendo uma profissão de fé semelhante à de Pedro quando Jesus a ordena a acreditar que seu irmão vai ressuscitar: “Sim, Senhor, eu creio firmemente que tu és o Cristo, o Filho de Deus, aquele que deve vir ao mundo” (João 11, 27).
O autor joanino também mostra que Jesus se alimentou com a conversa teológica e a subsequente conversão da mulher samaritana: “Eu tenho um alimento para comer, que vós não conheceis” (João 4, 32).
A mulher da unção – seja ela Maria de Betânia, no Evangelho de João, ou a discípula anônima vista em Mateus e Marcos – certamente entendeu a missão messiânica de Jesus melhor do que os discípulos homens que a criticaram. A fé da mulher de que Jesus estava de fato entrando em seu reino se mostrou pelo fato de ela ungir a cabeça de Jesus, um ato semelhante à unção realizada pelo profeta Samuel, significando a realeza de Davi. O gesto profético e amoroso dessa mulher deve ter sido muito reconfortante para Jesus enquanto ele enfrentava a sua paixão e morte.
Não me sinto confortável com a frase “mística feminina” neste contexto, já que a mística é mística e, em si mesma, não tem gênero. Dito isso, o encontro humano com o divino provavelmente pode ser influenciado pelo gênero do ser humano que só pode expressar tal encontro por meio do veículo da sua humanidade masculina ou feminina. Por exemplo, a mística de São João da Cruz é expressa de forma diferente do que a de Santa Teresa de Ávila. Ambos têm encontros místicos com o divino que expressam em uma linguagem única, influenciada pela totalidade da sua humanidade, o que inclui o seu gênero.
Nos Evangelhos, vemos muitos exemplos de encontros de Jesus com o Divino. O Evangelho de Lucas (Lucas 4, 18-19) revela que Jesus modelou a sua missão a partir dos escritos dos profetas. Primeiro, ele anuncia a sua missão de Deus na sinagoga da sua cidade natal de Nazaré, citando Isaías 61, 1,2: “O Espírito do Senhor está sobre mim, pois ele me consagrou com a unção, para anunciar a Boa Nova aos pobres: enviou-me para proclamar a libertação aos presos (…) para dar liberdade aos oprimidos”. Isso nos diz que Jesus foi profundamente influenciado pelos ensinamentos religiosos da sua própria tradição e encontrou a sua verdadeira identidade por meio do que poderia ser chamado de um encontro místico com a Justiça Divina, mediada pelos escritos de Isaías. Jesus passou o resto de sua vida pública sendo fiel ao seu chamado a proclamar o reino de Deus onde a justiça e a relação justa prevalecem, por fim, entre pobres e ricos, homens e mulheres, soberano e sujeito, forte e fraco.

IHU On-Line – Outra figura de destaque na história do cristianismo é Paulo de Tarso. Em sua opinião, quais as semelhanças ou diferenças entre esse grande apóstolo da Igreja primitiva e a “apóstola dos apóstolos”, Maria Madalena?
Chris Schenk – Tanto Maria de Magdala quanto Paulo tiveram experiências do Cristo Ressuscitado que mudaram as suas vidas. Essa é a grande semelhança.
A diferença é que as viagens e as cartas missionárias de Paulo às primeiras comunidades em todo o mundo mediterrâneo foram preservadas e fornecem um excelente retrato dos desafios reais enfrentados pelos primeiros cristãos. Eles são os primeiros escritos cristãos que temos.
Infelizmente, não temos nenhum registro direto semelhante do que aconteceu na vida e no testemunho subsequentes de Santa Maria de Magdala. Só podemos deduzir de fontes extracanônicas que ela era lembrada em algumas comunidades primitivas como uma proeminente líder mulher e discípula que compreendeu a missão de Jesus melhor do que os seus irmãos.
As cartas de Paulo também fornecem informações valiosas sobre a liderança coigual nas comunidades cristãs primitivas. Romanos 16 nos fala sobre os “colaboradores em Cristo” de Paulo, o casal Prisca e Áquila. O fato de Prisca ser nomeada primeira em quatro das seis vezes em que o casal é citado no Novo Testamento nos diz que ela provavelmente era a mais proeminente da dupla. Prisca e Áquila fundaram comunidades em Corinto, Éfeso e Roma que serviram como base de evangelização em cada uma dessas grandes cidades. Com Paulo, eles podem ser legitimamente chamados de “apóstolos aos gentios”, porque, como o próprio Paulo diz: “Eu lhes sou agradecido, e não somente eu, mas também todas as Igrejas fundadas entre os gentios” (Romanos 16, 04). Paulo louva outro casal de missionários, Júnias e seu marido Andrônico, como “apóstolos notáveis” (Romanos 16, 7). Júnia é a única mulher no Novo Testamento a quem é dado o título de “apóstola”.

IHU On-Line – Maria Madalena e Jesus coexistem no imaginário coletivo como um exemplo de um “amor proibido”, especialmente devido ao “beijo na boca” narrado nos Evangelhos apócrifos ou à dúvida sobre quem é a mulher que derrama “um perfume de nardo puro” nos pés de Jesus. Como você analisa, inspirada em Madalena, a conexão entre erotismo, sensualidade e mística?
Chris Schenk – Como disse anteriormente, a minha interpretação dos textos sobre a unção não se baseia em um erotismo místico, mas no significado profético da unção sobre a cabeça, como Samuel fez quando ungiu o rei Davi.
Todos os quatro Evangelhos falam sobre uma mulher que unge Jesus com um caro unguento perfumado. Em Mateus e Marcos, a mulher unge a cabeça de Jesus, evocando o profeta Samuel. Quando ela é criticada, Jesus a defende: “Onde for anunciado o Evangelho, no mundo inteiro, será mencionado também, em sua memória, o que ela fez” [Marcos 14, 9]. Infelizmente, essa mulher jamais é lembrada, já que, nas leituras do Domingo de Ramos, onde esse texto se encontra, ele é ou omitido ou tornado opcional.
Lucas retrata a mulher como uma pecadora pública, cuja unção dos pés de Jesus significa a sua grande fé e perdão. João mostra Maria ungindo os pés de Jesus no ambiente íntimo de Betânia. Como o lava-pés era um ritual devocional central na comunidade joanina, não é de se estranhar que João combina a história de Lucas da unção dos pés de Jesus com antigas tradições de unção da sua cabeça. Em Mateus, Marcos e João, a unção acontece pouco antes da prisão e paixão de Jesus.
Mas o que a unção significa? A tradição mais antiga, que evoca a unção profética de Samuel, é a pista. Essa discípula fiel entendeu a passagem de Jesus pela paixão e morte como a sua entrada real ao reino messiânico onde a liderança servidora reinará para sempre. O ato dela deve ter sido profundamente consolador para Jesus, enquanto ele enfrentava a efusão final para a vida do mundo.
Nas palavras de Isaías: “Eis o meu servo, dou-lhe o meu apoio. É o meu escolhido, alegria do meu coração. Pus nele o meu espírito, ele vai levar o direito às nações”. Para os seguidores de Jesus, a lavagem e a unção dos pés é uma estrada real que leva à vitória da Justiça.
A publicação em 2002 de O Código Da Vinci inflamou uma ampla polêmica em torno do verdadeiro papel de Maria de Magdala. Infelizmente, o livro de Dan Brown, embora sendo uma narrativa ficcional envolvente, fez um desserviço à Maria de Magdala histórica e a outras líderes mulheres da Igreja primitiva. Apesar de O Código Da Vinci transmitir um belo ideal da unidade essencial do masculino e feminino, ele é, em última análise, subversivo à liderança plena e igualitária das mulheres na Igreja, porque se centra na ficção do estado marital de Maria, em vez de se centrar no fato da sua liderança em proclamar a Ressurreição de Jesus.
Não há dados históricos ou bíblicos para sustentar a especulação de que Maria de Magdala era casada com Jesus. A controvérsia de que os escritores antigos não mencionam o seu casamento e sua prole por medo da perseguição judaica realmente não se sustenta, porque o Evangelho de João e grande parte da literatura apócrifa foram escritos depois da queda de Jerusalém, quando não haveria nada a temer das autoridades judaicas. Se Maria de Magdala fosse a esposa de Jesus e a mãe de seu filho, é altamente improvável que esses textos teriam omitido esses fatos importantes, especialmente porque ela é retratada proeminentemente tanto como a principal testemunha da Ressurreição quanto uma líder feminina que, de muitas formas, entendeu a missão de Jesus melhor do que os discípulos homens.
Se Jesus foi casado, não foi com Maria de Magdala, porque então ela teria sido conhecida como “Maria, a esposa de Jesus”, e não Maria de Magdala. Como vimos, convenções literárias e sociais na Antiguidade ditavam que, quando as mulheres eram mencionados (uma ocorrência muito rara), elas eram quase sempre nomeadas pela sua relação com a família patriarcal, por exemplo: “Joana, mulher de Cuza, alto funcionário de Herodes” (Lucas 8, 1-3). De forma atípica, Maria de Magdala foi nomeada de acordo com a cidade da qual ela provinha (não pela sua relação com um homem).

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