sábado, 20 de outubro de 2012

Fazem 50 anos, de Martin Descalzo

Quinta, 18 de outubro de 2012

Concílio Vaticano II. “A primavera chegou”

“É assim que em um 11 de outubro de 1962, no meio do outono, para a Igreja nasceu uma nova e inesperada primavera. O sol que brilha nas alturas no momento de escrever estas linhas, o belo céu romano que acolheu pela primeira vez sob a sua cúpula 2.500 bispos de todo o mundo, são testemunhas: a primavera chegou. A nave do Concílio começou a singrar”, escreve José Luis Martín Descalzo, em sua crônica sobre o significado do Concílio Vaticano II. A crônica está publicada no sítio espanhol Religión Digital, 13-10-2012. A tradução é do Cepat.

Eis a crônica.

São 8h35: começa a aventura mais solene do século.

O Concílio Vaticano I terminou com uma impressionante tempestade. O Vaticano II teve como prólogo um aguaceiro sem fim. Toda a tarde de ontem – depois de alguns belos dias de outono – o céu de Roma se viu obscurecido por uma forte chuva. Como se a Providência tratasse de encadear este Concílio com o precedente.

- Se continuar assim, amanhã a chuva vai “estragar” o cortejo da praça – comenta alguém.

- Bah! – respondem ao meu lado: isto João XXIII resolve com 10 minutos de oração.

Não sei se o Papa rezaria ou não por este assunto. O certo é que esta manhã, ao abrir a janela do meu quarto, às 7h, o solo ainda estava úmido, da recente chuva; mas já no céu um sol tímido lutava com a branda neblina da manhã.

Meia hora depois, todas as ruas adjacentes à Praça São Pedro vomitavam caravanas de peregrinos. E, entre eles, andando, de carro, com sobrepelizes brancas, com capas vermelhas, com simples batinas e os ornamentos debaixo do braço, bispos, cardeais, patriarcas, meninos e embaixadores se encaminhavam para a basílica.

Diante de mim cruzam as sandálias de algumas Irmãs de Foucauld e a resplandecente púrpura do cardeal Quiroga, uma moça arrastada por sua mãe e uma velha jornalista americana, a quem empurram em um carrinho de rodas. Há em todos os olhos uma cintilante alegria, no qual se misturam o gozo de assistir a um inesquecível acontecimento sobrenatural com a pressa de conseguir um bom lugar na basílica.

Quando os nossos crachás de Imprensa nos abrem passagem para o interior, aqueles que deverão permanecer na praça nos olham com inveja. Falta uma hora para o início da cerimônia e há diante da basílica cerca de 100 mil pessoas.

O interior da Praça São Pedro era um prodígio de luz e cor. Excessivo? Sim, um pouco excessivo; mas não íamos apenas para celebrar uma liturgia, mas também para uma festa. Um quê de decoração teatral quase lhe ia bem.

Na Aula Conciliar alguns monsenhores revisavam os últimos detalhes. Os membros das 85 missões iam chegando com suas faixas nacionais, com suas franjas levemente fora do lugar. E, diante da tribuna das Embaixadas, os 28 observadores, sobre os quais se voltam todos os olhares neste momento. O que estariam estes homens pensando agora? O que sentirão diante deste prodigioso espetáculo de unidade? Saberão adivinhar, por trás do esplendor das cortinas, a simplicidade do Pescador, a de todos os verdadeiros católicos?

Por meio de um pequeno transmissor tentamos acompanhar a cerimônia que está sendo celebrada neste momento na Capela Sistina. Mal o conseguimos. A basílica está materialmente coberta de cabos elétricos e telefônicos que convertem em som as emissões da Rádio Vaticana. Conseguimos por fim ouvir o “Ave Maris Stella”, com o qual começa a cerimônia. São 8h35. Sob a invocação de Maria, a esposa do carpinteiro, começa a mais solene aventura do século. Boa estrela do mar vai nos conduzir.

Um rio de mitras brancas começou a entrar na basílica. Uma procissão de um quilômetro, semelhante a um desfile de barcos no mar. Vistas da cúpula nos dariam, depois, uma impressão de tochas oscilantes.

E, finalmente – são 9h30 –, o Papa chega. Todos o vimos: entrou chorando. Seus olhos alegres brilhavam hoje mais do que nunca entre as lágrimas de felicidade.

Toda a basílica se pôs, então, de pé. Um cardeal pediu os binóculos ao seu secretário e os dirigiu para a figura do Papa. Quatro dos observadores foram tomados pela curiosidade, abandonaram seus lugares e se precipitaram materialmente para o centro para ver a chegada do Papa. E os inflexíveis guardas suíços, talvez pela primeira vez, quebraram o protocolo deixando-os passar.

Os bispos estavam em dúvidas se aplaudiam o Papa no momento em que passasse diante deles; um ou outro o fazia como com medo de faltar ao respeito à mitra que tinha entre as mãos. Os prelados se entreolhavam um pouco indecisos, sem saber o que fazer. “Na hora da verdade, em relação aos Concílios somos todos novatos”, me dizia ontem um deles. Centenas de fotógrafos improvisados disparavam suas máquinas. E os profissionais, com suas teleobjetivas, longas como canhões, apontavam sem cessar para todos como se de um momento para o outro o Concílio fosse terminar.

Depois voltou a calma à basílica e começou a mais solene missa que recorde a História. Só a presença de Jesus fez mais soberanamente solene a da primeira Quinta-feira Santa. Ou talvez era simplesmente a mesma cerimônia que se prolongava 20 séculos depois? Sim, isto era o mais belo que ali estava acontecendo. Não o esplendor, não o número, nem as luzes, nem as cores.

Sentia-se que o mais importante da cerimônia era o calor que nos unia a todos, uns aos outros, os vivos e os mortos, subindo ao longo da história dos 20 Concílios até chegar ao dia em que Jesus enviou os seus apóstolos a pregar.

Sentia-se ali, viva como nunca, a alegria de ser filho da Igreja. E via esta Mãe, mais bela que nunca, adornada, não com ouro, nem tapetes, mas com as quatro joias únicas de sua unidade, de sua santidade, de sua catolicidade e de sua conexão direta com os apóstolos.

A procissão dos bispos e a oração unânime do Credo cantavam a unidade da Igreja; todos irmanados em uma mesma fé, em uma inalterável devoção ao Romano Pontífice, ao ancião que, sob o baldaquino, ria entre lágrimas. O que pensariam, ao contemplar isso, os 28 observadores? Não cruzaria por seu coração a mais viva nostalgia da unidade perdida? Que sentiram no momento em que João XXIII se deteve diante deles e, inclinando-se, os saudou com os braços abertos, com o coração muito mais aberto que os braços?

Ali estava a santa Igreja. Ao longo da missa observei tenaz, curiosa, quase inquisitorialmente, os rostos dos bispos. Eram homens que sabiam rezar, lhes garanto. Mas oravam sem tensão, sem posturas falsamente ascéticas, naturais, humildes. Uma santidade feliz, tanto que, quando durante a oração da ladainha os nomes dos santos ecoaram pela basílica, subiram ao longo dos muros, lamiendo as estátuas dos santos fundadores, sentia-se a divisão entre a Igreja militante que nós formamos e a Igreja triunfante que eles constituem. Eram ambas duas Igrejas triunfantes, uma, que já descansa no triunfo definitivo, e a outra que, dia a dia, constrói o humilde triunfo de Deus sobre a terra.

Ali também estava a Igreja católica, a que não distingue raças, nações, cores, povos, idades, modos de ser nem de pensar. Durante o desfile íamos reconhecendo as figuras mais egrégias ou conhecidas do Episcopado: “Aquele é o bispo de Hiroshima”. “Aquele é da Argélia”. “Aquele, o de Nova Orleans, que há pouco condenou os racistas”. “Aquele é dom Mendoza, o bispo peruano, benjamim do Concílio com seus 34 anos”. “Aquele, dom Carinci, que no dia 09 de novembro fará 100 anos”.

Ali estavam todos, muitos jovens, nascidos mais da metade em nosso século, outros com uma longa ancianidade; muitos com muitos anos de episcopado, dois nomeados há apenas quatro dias. Todos ali: os bispos da cúria romana e o bispo da Nova Zelândia, que percorreu milhares de quilômetros para chegar até aí, mas que não precisou trazer seu coração, que sempre esteve junto ao de Pedro.

Ali estava a Igreja apostólica. No lugar de honra da basílica, a estátua de bronze do apóstolo-pedra, coroada com a tríplice coroa e o anel do Pescador no dedo. Ali seu pé, gastado pelos beijos dos católicos há oito séculos, unidos, empalmados todos os velhos apóstolos, os doze pescadores que um dia abandonaram as redes e começaram a loucura de pregar as bem-aventuranças pelo mundo e que tiveram desde então milhares e milhares de filhos loucos na fé. Ali as tumbas dos Papas contemplariam com gozo esta Igreja pela qual eles lutaram, mas esplendorosa, mais crescida do que nunca, na figura dos 2.488 prelados que participaram da abertura esta manhã.

Sim, sentia-se como nunca, a alegria de ser católico, a felicidade, jamais merecida, de ter sido chamado a esta casa de todos que é Roma.

E na verdade Roma nunca foi tão casa de todos como hoje, às 11h05, enquanto os cardeais, bispos, abades e patriarcas prestavam a obediência a João XXIII. Mas, por acaso era aquilo uma cerimônia de “obediência”? O Papa abraçava a todos, dava-lhes palmadinhas nas costas, falava-lhes um a um, contava-lhes quem sabe quais coisas divertidas, víamos brilhar os dentes brancos de dom Rugamwa entre o sorriso, e as lágrimas correndo pelas bochechas do cardeal Wyszynski, lágrimas de alegria, como as que dissimuladamente o Papa secou pela segunda vez. E isto é a “obediência” entre os católicos? Não há nenhuma soleníssima, séria, adusta inclinação? Não, nada disso, até o beijo dos pés se fazia gesto caseiro, graciosamente filial diante da impressionante humanidade do homem que Deus colocou à frente da sua Igreja.

Em seguida, começaram as ladainhas. Enquanto isso, dei uma volta pelas naves laterais da basílica. Em um dos lugares havia um cavalheiro que parecia uma estampa arrancada do século XVI, com seu vestido barroco, com sua gorjeira branca. Acreditava não ser visto por ninguém. Rezava. Ali, longe da solenidade, do colorido da nave central, em uma pequena capela esquecida, um cristão simplesmente rezava. Nele senti representados os milhares e milhões de cristãos que terão vivido esta manhã “seu” concílio desde “seu” rincão. As monjas de clausura, os missionários que na África ainda sonham em conhecer a televisão, o lavrador que esta manhã teve que sair para arar os campos.

Depois, saí da praça.

Já são passados das 12h e ainda há cerca de 50.000 pessoas que aguardam a saída dos Padres. O céu está aberto, claríssimo, em um destes dias de outono que justamente tornaram famosos os outonos romanos quando o sol é alegre e todas as coisas tomam “uma cor de folha seca”.

A Sala de Imprensa está cheia de jornalistas que não puderam entrar na basílica e acompanham pela televisão a cerimônia. Muitos deles – que escrevem para jornais da tarde – a assistem diante da máquina de escrever, redigindo suas crônicas ao mesmo ritmo em que os acontecimentos se produzem. Ao fundo soam os telex, já comunicando-se com todas as redações do mundo. Há um jornalista que ouço redigindo sua crônica para Genebra por telefone. Outros folheam o discurso do Papa, que acabam de receber já traduzido, antes mesmo de o Papa pronunciá-lo, com o compromisso de honra de não transmiti-lo aos seus jornais antes que o Papa o tenha pronunciado.

Com o discurso em uma mão e um pequeno rádio na outra, me afasto da basílica e me interno nas ruas de Roma. O centro da cidade segue sua vida cotidiana. Os comércios abertos, pessoas sentadas às portas dos bares. “Os romanos – dizem – já viram de tudo”. E são muitos os filhos da Igreja que ainda não descobriram o que está acontecendo.

Ouço as palavras do Papa sobre este transfundo de ônibus, de homens precipitados que vão aos seus negócios, passando na frente de um bar no qual troa a última música da moda. E penso que nunca compreendi melhor a necessidade deste Concílio. Uma injeção de fé é necessária. Sorrio ao ver uma velhinha que vende loteria em um lugar e que está escutando, assim como eu, o discurso em seu rádio. “Você não vai à Praça São Pedro, reverendo” – me pergunta. Eu –acrescento – já teria gostado de ir, mas... é preciso ganhar para comer”.

Volto a me encaminhar na direção da Praça São Pedro, agora mais feliz. Talvez muitos dos que estão longe têm o coração mais próximo do que pensamos. E o discurso do Papa me vai calando fundo. Estou quase pálido de alegria com as coisas maravilhosas que ouço. Sim, isto deverá ser relido com calma, minuciosamente. Porque não é um discurso que se lê apressadamente; é todo o programa para um mundo diferente, um século no qual o mundo e a Igreja não voltarão a ser inimigos. Deverá ser relido, estudado novamente, saboreado, sim.

E eis-me aqui novamente na basílica, a tempo de receber a última bênção do Papa. É 1h20 da tarde. O Papa, traça sobre o mundo a sua bênção, e depois suas mãos fazem um gesto curiosíssimo: joga-as para frente, como se tratasse de empurrar a sua bênção para que chegasse mais longe.

Depois, se afasta, abençoando ainda mais, integralmente feliz, com os olhos luminosos, agora sem lágrimas.

O Concílio começou. Releio agora a preciosa oração que Santo Isidoro de Sevilha escreveu para os Concílios de Toledo e que esta manhã o Papa rezou como abertura deste Vaticano II: “Eis-nos aqui, Senhor, Espírito de Santidade, curvados pelo peso do pecado, mas reunidos em vosso nome. Vinde e permanecei conosco. Purificai os nossos corações; inspirai nossas ações e nossa conduta; mostrai-nos o que devemos fazer para, com a vossa ajuda, fazer inteiramente o que vós queirais. Não permitais que faltemos à justiça, vós que sois a própria equidade. Que a ignorância não nos faça errar, nem a simpatia nos desvie. Que nem o interesse nem o favoritismo nos conduzam ao mal. Ata-nos com eficácia da vossa Graça para que em nada nos afastemos da verdade”.

Poderá Deus não escutar esta humilde oração que toda a Igreja levantou a Ele há algumas horas? Seu Evangelho, como único guia, foi o centro desta assembleia, colocado em um belo trono, mais solene, mais central que o do próprio Pontífice. Porque o Evangelho dará ao mundo a luz que o mundo necessita agora que a Igreja se dispõe a olhar-se n’Ele como um espelho. “Diz-se que o mundo envelhece – dizia um tempo atrás o Papa. Não é absolutamente verdade, não envelhece. Cristo o rejuvenesce todas as manhãs”.

É assim que em um 11 de outubro de 1962, no meio do outono, para a Igreja nasceu uma nova e inesperada primavera. O sol que brilha nas alturas no momento de escrever estas linhas, o belo céu romano que acolheu pela primeira vez sob a sua cúpula 2.500 bispos de todo o mundo, são testemunhas: a primavera chegou. A nave do Concílio começou a singrar.

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