O jornal italiano “Corriere della Sera” publicou, neste sábado
(1), a última entrevista do cardeal Carlo Martini, ex-arcebispo de Milão que
morreu nesta sexta-feira, aos 85 anos. Na conversa, gravada em agosto , o
religioso disse que “a Igreja Católica está cansada” e “200 anos
atrasada”.
Destaque entre os católicos progressistas, Martini defendia um
posicionamento mais liberal da Igreja Católica, pois acreditava que só assim a
instituição iria se aproximar novamente das pessoas. Entre as medidas pregadas
pelo ex-arcebispo para conter o afastamento dos fiéis estavam o reconhecimento
dos erros do passado e a implantação de mudanças radicais na instituição,
começando pelo próprio Papa.
“A nossa cultura envelheceu, as nossas igrejas são grandes e
estão vazias e a burocracia aumenta, os nossos ritos religiosos e as vestes que
usamos são pomposos”, disse na entrevista, concedida a um padre jesuíta. “Sei
que não podemos nos livrar disso facilmente, mas pelo menos poderíamos tentar
ser como os homens livres e mais próximos dos fieis”.
O cardeal sofria de Mal de Parkinson há dez anos. Seu corpo
será enterrado na segunda-feira, em Milão.
Confira a entrevista:
Como o senhor vê a situação da Igreja?
A Igreja está cansada na Europa do bem-estar e na América. A
nossa cultura envelheceu, as nossas igrejas são grandes, as nossas casas
religiosas estão vazias, e o aparato burocrático da Igreja aumenta, os nossos
ritos e os nossos hábitos são pomposos. Essas coisas expressam o que nós somos
hoje? (...)
O bem-estar pesa. Nós nos encontramos como o jovem rico que,
triste, foi embora quando Jesus o chamou para fazer com que ele se tornasse seu
discípulo. Eu sei que não podemos deixar tudo com facilidade. Menos ainda,
porém, poderemos buscar pessoas que sejam livres e mais próximas do próximo,
como foram o bispo Romero e os mártires jesuítas de El Salvador. Onde estão
entre nós os nossos heróis para nos inspirar? Por nenhuma razão devemos
limitá-los com os vínculos da instituição.
Quem pode ajudar a Igreja hoje?
O padre Karl Rahner usava de bom grado a imagem das brasas que
se escondem sob as cinzas. Eu vejo na Igreja de hoje tantas cinzas sobre as
brasas que muitas vezes me assola uma sensação de impotência. Como se pode
livrar as brasas das cinzas de modo a revigorar a chama do amor? Em primeiro
lugar, devemos procurar essas brasas. Onde estão as pessoas individuais cheias
de generosidade como o bom samaritano? Que têm fé como o centurião romano? Que
são entusiastas como João Batista? Que ousam o novo como Paulo? Que são fiéis
como Maria de Mágdala? Eu aconselho o papa e os bispos a procurar 12 pessoas
fora da linha para os postos de direção. Pessoas que estejam perto dos pobres e
que estejam cercadas por jovens e que experimentam coisas novas. Precisamos do
confronto com pessoas que ardem, de modo que o espírito pode se difundir por
toda parte.
Que instrumentos o senhor aconselha contra o cansaço da
Igreja?
Eu aconselho três instrumentos muito fortes. O primeiro é a
conversão: a Igreja deve reconhecer os próprios erros e deve percorrer um
caminho radical de mudança, começando pelo papa e pelos bispos. Os escândalos da
pedofilia nos levam a tomar um caminho de conversão. As questões sobre a
sexualidade e sobre todos os temas que envolvem o corpo são um exemplo disso.
Estes são importantes para todos e, às vezes, talvez, são até importantes
demais. Devemos nos perguntar se as pessoas ainda ouvem os conselhos da Igreja
em matéria sexual. A Igreja ainda é uma autoridade de referência nesse campo ou
somente uma caricatura na mídia?
O segundo é a Palavra de Deus. O Concílio Vaticano II
restituiu a Bíblia aos católicos. (...) Somente quem percebe no seu coração essa
Palavra pode fazer parte daqueles que ajudarão a renovação da Igreja e saberão
responder às perguntas pessoais com uma escolha justa. A Palavra de Deus é
simples e busca como companheiro um coração que escute (...). Nem o clero nem o
Direito eclesial podem substituir a interioridade do ser humano. Todas as regras
externas, as leis, os dogmas nos foram dados para esclarecer a voz interior e
para o discernimento dos espíritos.
Para quem são os sacramentos? Estes são o terceiro instrumento
de cura. Os sacramentos não são uma ferramenta para a disciplina, mas sim uma
ajuda para as pessoas nos momentos do caminho e nas fraquezas da vida. Levamos
os sacramentos às pessoas que precisam de uma nova força? Eu penso em todos os
divorciados e nos casais em segunda união, nas famílias ampliadas. Eles precisam
de uma proteção especial. A Igreja sustenta a indissolubilidade do matrimônio. É
uma graça quando um casamento e uma família conseguem isso (...).
A atitude que temos com relação às famílias ampliadas irá
determinar a aproximação à Igreja da geração dos filhos. Uma mulher foi
abandonada pelo marido e encontra um novo companheiro que cuida dela e dos seus
três filhos. O segundo amor prospera. Se essa família for discriminada, não só a
mãe é cortada fora, mas também os seus filhos. Se os pais se sentem fora da
Igreja, ou não sentem o seu apoio, a Igreja perderá a geração futura. Antes da
Comunhão, nós rezamos: "Senhor, eu não sou digno...". Nós sabemos que não somos
dignos (...). O amor é graça. O amor é um dom. A questão sobre se os divorciados
podem comungar deve ser invertida. Como a Igreja pode ajudar com a força dos
sacramentos aqueles que têm situações familiares complexas?
O que o senhor faz pessoalmente?
A Igreja ficou 200 anos para trás. Como é possível que ela não
se sacuda? Temos medo? Medo ao invés de coragem? No entanto, a fé é o fundamento
da Igreja. A fé, a confiança, a coragem. Eu sou velho e doente e dependo da
ajuda dos outros. As pessoas boas ao meu redor me fazem sentir o amor. Esse amor
é mais forte do que o sentimento de desconfiança que às vezes eu percebo com
relação à Igreja na Europa. Só o amor vence o cansaço. Deus é Amor. Eu ainda
tenho uma pergunta para você: o que você pode fazer pela Igreja?
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