"O candidato republicano vestiu a indumentária preparada pelos alfaiates do Tea Party, reconhecendo que seu partido foi tomado de assalto pela corrente radical. Na Casa Branca, ele não pretenderia honrar os compromissos extravagantes proclamados ao longo da campanha eleitoral. Eis aí a razão definitiva para qualificá-lo como o homem mais perigoso da Terra", escreve Demétrio Magnoli, sociólogo e doutor em geografia humana pela USP, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 13-09-2012.
Eis o artigo.
Seu nome é Mitt Romney, o candidato republicano à presidência dos EUA. Afável, propenso ao diálogo, oriundo da quase defunta corrente moderada do partido, o ex-governador do Estado liberal de Massachusetts não parece um homem perigoso. No caminho até a disputa com Barack Obama, todavia, ele sofreu uma mutação essencial. O Romney de hoje, que não se recorda mais do Romney original, é o homem mais perigoso da Terra. O diagnóstico, inevitável, deriva da abordagem adotada pela chapa republicana dos grandes temas de política externa.
Antes de tudo, há a China. Romney prometeu que "no primeiro dia na Casa Branca" declararia a China um "manipulador cambial". A consequência óbvia seria a imposição de tarifas protecionistas a produtos chineses, deflagrando uma guerra econômica entre as duas maiores potências mundiais. É a receita certa para provocar a quebra em série das lajes já tensionadas que sustentam o edifício da economia global.
A acusação é de um cinismo patente. A China foi admitida na Organização Mundial do Comércio há mais de uma década, apesar da "manipulação cambial". Os chineses sempre "manipulam" o câmbio, pois essa é uma característica inerente ao capitalismo de Estado. Os EUA nem sempre "manipulam" o câmbio, mas fazem isso sempre que precisam, notadamente desde 2009, por meio de sucessivas rodadas de quantitative easing, o eufemismo cunhado para descrever pudicamente a fabricação de dólares em escala industrial. Aos poucos a China valoriza sua taxa de câmbio real, como querem os EUA - e como requer o interesse chinês de ligar os motores do mercado interno a fim de engendrar um novo ciclo de crescimento.
O cinismo é um pecado menor perto da irresponsabilidade. A China é o principal fornecedor de manufaturados aos EUA e sofreria um golpe profundo com as represálias americanas. Contudo seus vultosos saldos comerciais são, em larga medida, investidos na aquisição de títulos do Tesouro americano. Isso significa que a China financia a política monetária expansionista dos EUA, assegurando espaço para a emissão de dólares em ambiente de juros e inflação baixos. Os chineses retaliariam Romney faltando a algumas rodadas de leilão dos títulos americanos. A ruptura do intercâmbio de manufaturas por papéis da dívida provocaria o pânico nos mercados financeiros, lançando o mundo na espiral regressiva de uma depressão.
Em segundo lugar, há o Irã. Na sua visita a Israel, o homem mais perigoso da Terra entregou-se à aventura de estimular um ataque unilateral israelense ao Irã. A hipótese está sobre a mesa faz tempo, provocando amargas discórdias no governo e nas agências de inteligência de Israel. Um ataque dificilmente eliminaria as instalações nucleares iranianas, mas degeneraria em conflito regional de incertas proporções. Ao mesmo tempo, certamente produziria um retrocesso fundamental na gramática política da Primavera Árabe, contaminando-a de antiamericanismo e antissemitismo.
Desde o início as revoltas populares contra os tiranos organizaram-se em torno dos valores das liberdades, dos direitos políticos e da responsabilidade dos governos perante o povo. Tais "valores ocidentais", que são aspirações humanas universais, impelem as correntes laicas e democráticas no mundo árabe e, mais além, no próprio Irã, que não é um país árabe. Eles também regam as sementes do reformismo no interior de organizações fundamentalistas, como a Irmandade Muçulmana. Toda essa evolução, de amplas repercussões, poderia ser comprometida pela guerra que Romney parece insuflar.
Os gastos militares ocupam o terceiro lugar. Paul Ryan, o representante da ala do Tea Party na chapa republicana, em palestra recente criticou a redução relativa do orçamento militar, que decorre da pressão dos gastos com a saúde. O vice traçou um paralelo com o declínio britânico, cem anos atrás, quando a antiga potência foi obrigada a transferir o cetro para os EUA, dada a sua incapacidade de conservar a primazia militar. A Grã-Bretanha deu lugar a uma potência que compartilhava seus valores, mas o declínio americano deixa entrever o espectro de ascensão de uma potência cujos valores conflitam com os dos EUA, sublinhou Ryan.
O paralelo está sustentado sobre premissas falsas. Os britânicos tinham a maior força naval, mas sua Marinha equivalia, apenas, à soma das duas frotas de guerra seguintes e as suas forças terrestres eram inferiores às das potências continentais europeias. Em contraste, o orçamento militar dos EUA representa dois quintos dos gastos militares globais e equivale aos orçamentos somados dos 14 países seguintes. Os gastos militares da China - o espectro mencionado por Ryan - ainda não alcançam um quinto dos gastos americanos. Há dez anos o comentarista neoconservador Charles Krauthammer consagrou um artigo à defesa do argumento de que a inabalável hegemonia militar dos EUA asseguraria mais um século de liderança americana. A hipótese contrária, do declínio americano, conta com arautos sérios - mas eles nunca utilizam o argumento militar.
Provavelmente Romney não acredita em nada do que diz sobre política externa. Ao que parece, o candidato republicano vestiu a indumentária preparada pelos alfaiates do Tea Party, reconhecendo que seu partido foi tomado de assalto pela corrente radical. Na Casa Branca, ele não pretenderia honrar os compromissos extravagantes - as "bravatas de oposição", na linguagem de Lula - proclamados ao longo da campanha eleitoral. Eis aí a razão definitiva para qualificá-lo como o homem mais perigoso da Terra. A palavra do presidente dos EUA deveria ter valor maior que o dos ativos podres do Lehman Brothers, ao menos na esfera dos temas estratégicos da ordem econômica e geopolítica mundial. Se Romney não pensa assim, ele representa mais perigo que a manipulação cambial chinesa ou o programa nuclear iraniano.
Eis o artigo.
Seu nome é Mitt Romney, o candidato republicano à presidência dos EUA. Afável, propenso ao diálogo, oriundo da quase defunta corrente moderada do partido, o ex-governador do Estado liberal de Massachusetts não parece um homem perigoso. No caminho até a disputa com Barack Obama, todavia, ele sofreu uma mutação essencial. O Romney de hoje, que não se recorda mais do Romney original, é o homem mais perigoso da Terra. O diagnóstico, inevitável, deriva da abordagem adotada pela chapa republicana dos grandes temas de política externa.
Antes de tudo, há a China. Romney prometeu que "no primeiro dia na Casa Branca" declararia a China um "manipulador cambial". A consequência óbvia seria a imposição de tarifas protecionistas a produtos chineses, deflagrando uma guerra econômica entre as duas maiores potências mundiais. É a receita certa para provocar a quebra em série das lajes já tensionadas que sustentam o edifício da economia global.
A acusação é de um cinismo patente. A China foi admitida na Organização Mundial do Comércio há mais de uma década, apesar da "manipulação cambial". Os chineses sempre "manipulam" o câmbio, pois essa é uma característica inerente ao capitalismo de Estado. Os EUA nem sempre "manipulam" o câmbio, mas fazem isso sempre que precisam, notadamente desde 2009, por meio de sucessivas rodadas de quantitative easing, o eufemismo cunhado para descrever pudicamente a fabricação de dólares em escala industrial. Aos poucos a China valoriza sua taxa de câmbio real, como querem os EUA - e como requer o interesse chinês de ligar os motores do mercado interno a fim de engendrar um novo ciclo de crescimento.
O cinismo é um pecado menor perto da irresponsabilidade. A China é o principal fornecedor de manufaturados aos EUA e sofreria um golpe profundo com as represálias americanas. Contudo seus vultosos saldos comerciais são, em larga medida, investidos na aquisição de títulos do Tesouro americano. Isso significa que a China financia a política monetária expansionista dos EUA, assegurando espaço para a emissão de dólares em ambiente de juros e inflação baixos. Os chineses retaliariam Romney faltando a algumas rodadas de leilão dos títulos americanos. A ruptura do intercâmbio de manufaturas por papéis da dívida provocaria o pânico nos mercados financeiros, lançando o mundo na espiral regressiva de uma depressão.
Em segundo lugar, há o Irã. Na sua visita a Israel, o homem mais perigoso da Terra entregou-se à aventura de estimular um ataque unilateral israelense ao Irã. A hipótese está sobre a mesa faz tempo, provocando amargas discórdias no governo e nas agências de inteligência de Israel. Um ataque dificilmente eliminaria as instalações nucleares iranianas, mas degeneraria em conflito regional de incertas proporções. Ao mesmo tempo, certamente produziria um retrocesso fundamental na gramática política da Primavera Árabe, contaminando-a de antiamericanismo e antissemitismo.
Desde o início as revoltas populares contra os tiranos organizaram-se em torno dos valores das liberdades, dos direitos políticos e da responsabilidade dos governos perante o povo. Tais "valores ocidentais", que são aspirações humanas universais, impelem as correntes laicas e democráticas no mundo árabe e, mais além, no próprio Irã, que não é um país árabe. Eles também regam as sementes do reformismo no interior de organizações fundamentalistas, como a Irmandade Muçulmana. Toda essa evolução, de amplas repercussões, poderia ser comprometida pela guerra que Romney parece insuflar.
Os gastos militares ocupam o terceiro lugar. Paul Ryan, o representante da ala do Tea Party na chapa republicana, em palestra recente criticou a redução relativa do orçamento militar, que decorre da pressão dos gastos com a saúde. O vice traçou um paralelo com o declínio britânico, cem anos atrás, quando a antiga potência foi obrigada a transferir o cetro para os EUA, dada a sua incapacidade de conservar a primazia militar. A Grã-Bretanha deu lugar a uma potência que compartilhava seus valores, mas o declínio americano deixa entrever o espectro de ascensão de uma potência cujos valores conflitam com os dos EUA, sublinhou Ryan.
O paralelo está sustentado sobre premissas falsas. Os britânicos tinham a maior força naval, mas sua Marinha equivalia, apenas, à soma das duas frotas de guerra seguintes e as suas forças terrestres eram inferiores às das potências continentais europeias. Em contraste, o orçamento militar dos EUA representa dois quintos dos gastos militares globais e equivale aos orçamentos somados dos 14 países seguintes. Os gastos militares da China - o espectro mencionado por Ryan - ainda não alcançam um quinto dos gastos americanos. Há dez anos o comentarista neoconservador Charles Krauthammer consagrou um artigo à defesa do argumento de que a inabalável hegemonia militar dos EUA asseguraria mais um século de liderança americana. A hipótese contrária, do declínio americano, conta com arautos sérios - mas eles nunca utilizam o argumento militar.
Provavelmente Romney não acredita em nada do que diz sobre política externa. Ao que parece, o candidato republicano vestiu a indumentária preparada pelos alfaiates do Tea Party, reconhecendo que seu partido foi tomado de assalto pela corrente radical. Na Casa Branca, ele não pretenderia honrar os compromissos extravagantes - as "bravatas de oposição", na linguagem de Lula - proclamados ao longo da campanha eleitoral. Eis aí a razão definitiva para qualificá-lo como o homem mais perigoso da Terra. A palavra do presidente dos EUA deveria ter valor maior que o dos ativos podres do Lehman Brothers, ao menos na esfera dos temas estratégicos da ordem econômica e geopolítica mundial. Se Romney não pensa assim, ele representa mais perigo que a manipulação cambial chinesa ou o programa nuclear iraniano.
Nenhum comentário:
Postar um comentário