O novo livro do Papa Ratzinger é dedicado à infância de Jesus. O seu alvo é a exegese contemporânea, aquela que, privilegiando a filologia e a historiografia, evidencia o problema da historicidade das muitas narrações evangélicas. Mas a tentativa de Bento XVI está fadada ao fracasso, porque as contradições dos relatos não pode ser remediadas.
A opinião é do teólogo italiano Vito Mancuso, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 21-11-2012.
Eis o texto.
Com o livro intitulado A infância de Jesus que chega às livrarias dos principais países do mundo, conclui-se a obra total de quase mil páginas em três volumes dedicada por Joseph Ratzinger a Jesus de Nazaré. Com ela, ele pretende fazer com que os católicos voltem a identificar narração evangélica e história real como ocorria até algumas décadas atrás, antes do desenvolvimento da moderna exegese histórico-crítica. O autor atinge o seu objetivo? A meu ver, não, porque se trata de uma mission impossible.
Todos amamos o Natal com a sua atmosfera de alegria e de paz, e esse novo livro do papa é uma grande ajuda para viver a sua espiritualidade. O objeto são os dois primeiros capítulos do Evangelho de Mateus e do Evangelho de Lucas, os chamados "evangelhos da infância". Por séculos, eles foram lidos como relatos históricos reais, mas hoje a exegese bíblica histórico-crítica é quase unânime em declarar o contrário. O objetivo do papa é de que os evangelhos da infância possam voltar a ser lidos como historicamente fundados.
O seu adversário de consequência não pode ser senão a exegese que, privilegiando a filologia e a historiografia, evidencia a problemática historicidade de muitas narrações evangélicas. Com isso, os exegetas não querem dizer que os Evangelhos são falsos, mas só que, com base neles, não se pode reconstruir com certeza a história de Jesus, muito menos a do seu nascimento, e que é preciso lê-los sabendo que a finalidade é teológico-espiritual e não historiográfica.
Nos Evangelhos, há dados historicamente certos ao lado de elaborações simbólicas historicamente não confiáveis, e a tarefa da exegese histórico-crítica consiste em distinguir as duas dimensões. A consequência inevitável, porém, é que o Jesus dos Evangelhos não coincide com o Jesus da história, isto é, o exato oposto da intenção programática de Ratzinger declarado no primeiro volume: "Apresentar o Jesus dos Evangelhos como o Jesus real, como o Jesus histórico em sentido propriamente dito". E, precisamente por isso, também no novo livro assim como nos anteriores, o papa dirige ataques recorrentes à exegese histórico-crítica (cf., por exemplo, as páginas 25, 60, 62, 78, 123).
Mas, como todos aqueles que, antes dele, tentaram harmonizar os relatos evangélicos, Ratzinger também sobrevoa sobre as contradições entre os relatos de Mateus e de Lucas. São eles que tornam impossível uma história da infância de Jesus digna desse nome, como consideram estudiosos do calibre de Brown, Sanders, Meier, Dunn, Barbaglio, Fabris, Maggioni, Jossa, Ortensio da Spinetoli, Pesce e muitos outros.
Certamente, entre Mateus e Lucas, há elementos comuns: a identidade dos pais, o anúncio evangélico, a concepção de Maria sem relações sexuais com o marido, o nascimento em Belém sob o reinado de Herodes, a transferência para Nazaré. Mas também há discordâncias que não podem ser harmonizadas: antes do nascimento de Jesus, Maria e José ou residiam em Nazaré (Lucas) ou residiam em Belém (Mateus); a sua viagem de Nazaré a Belém ou aconteceu (Lc) ou não aconteceu (Mt); Jesus nasceu ou na casa dos pais (Mt) ou em uma manjedoura (Lc); o massacre das crianças de Belém ou aconteceu (Mt) ou não aconteceu (Lc); os pais ou fugiram para o Egito para salvar o menino dos soldados de Herodes (Mt) ou foram ao templo de Jerusalém para a circuncisão sem que os soldados de Herodes se preocupassem com o menino (Lc); a família de Belém ou voltou logo para casa em Nazaré da Galileia (Lc) ou foi para Nazaré só depois de ter estado no Egito e pela primeira vez (Mt).
Além disso, é oposta a atmosfera abrangente que envolve o nascimento de Jesus, real e trágica em Mateus, simples e bucólica em Lucas: a quem dar crédito? Na mente dos fiéis, os dois relatos se misturam sem distinguir os elementos de um e de outro, e o papa promove essa tradicional mistura acrítica, mas a exigência historiográfica não o permite; os dados são ou como Mateus os apresenta ou como Lucas os apresenta, ou nem de um modo nem de outro; em todo caso, não são harmonizáveis. Portanto, se fosse verdade, como escreve Ratzinger, que Mateus e Lucas "queriam escrever história, história real, acontecida" (p. 26), encontraríamos realmente diante de um belo problema, porque um dos dois evangelistas seguramente estaria errado.
Além disso, está a questão de como a notícia da concepção virginal chegou aos evangelistas. O papa se inclina pela "tradição familiar" (p. 65), no sentido de que teria sido Maria que comunicou aos discípulos o extraordinário evento de ter concebido o filho sem relações sexuais. Mas, se realmente tivesse sido assim, não se explicaria a escassa atenção do Novo Testamento a Maria, incluindo o livro dos Atos dos Apóstolos escrito justamente por Lucas, que a menciona somente uma vez e quase de passagem, enquanto dá muito mais espaço não só a Pedro e a Paulo, mas até mesmo a personagens secundários como Lídia, a comerciante de púrpura.
É crível, talvez, que Lucas, sabendo diretamente de Maria sobre a concepção extraordinária de Jesus, a ignore completamente nos Atos, sem escrever nada sobre onde ela vivia, o que fazia, como terminou a sua vida terrena e sem nunca ter lhe dado a palavra sequer uma vez? Tudo isso leva a duvidar muito do que o papa sustenta.
A realidade é que os Evangelhos da infância apresentam um perfil histórico geral bastante improvável. O dado histórico seguro (o nascimento de Jesus) é circundado por uma série de particulares incertos, senão improváveis, começando pelo lugar do nascimento, que para o papa é, obviamente, a tradicional Belém, enquanto "a maioria dos estudiosos duvida que Jesus nasceu em Belém" (The Cambridge Companion to Jesus, p. 22), e um exegeta católico Raymond Brown chegou a falar de "provas positivas em favor de Nazaré".
Os Evangelhos, portanto, não são confiáveis? Não, são dignos de confiança, mas contanto que se diferenciem neles diversos níveis de historicidade, isto é, de dados historicamente seguros, dados prováveis e dados improváveis. Em particular, os evangelhos da infância são uma interpretação do significado existencial de Jesus, para cuja manifestação o relato do seu nascimento foi enriquecido por uma série de elementos simbólicos, como era normal na antiguidade para os grandes personagens. Tudo isso ao longo dos séculos serviu para atrair a atenção sobre Jesus, porque no passado a humanidade identificava a presença do divino com os milagres e o extraordinário. Hoje, no entanto, ocorre o contrário. Hoje, os milagres e o extraordinário são mais de dano do que de ajuda para a autêntica comunicação espiritual. Chegamos a uma visão de mundo mais pacata, mais desencantada, mais realista; aos frisos do barroco, prefere-se a austera simplicidade do romantismo.
Essa maior maturidade se reflete no trabalho da exegese bíblica mediante o método histórico-crítico, um trabalho sério e altamente qualificado, como nunca antes havia acontecido na história, um trabalho de porte internacional e interconfessional cujos resultados se oferecem à consciência sem forçações dogmáticas.
Ratzinger, porém, não gosta do método histórico-crítico; considera-o prejudicial para a fé e, talvez por isso, no seu livro, ele nem menciona o autor do estudo mais importante sobre os evangelhos da infância, o já citado Raymond Brown, sacerdote católico, por muito tempo membro da Pontifícia Comissão Bíblica.
Brown conclui assim a sua obra monumental sobre os evangelhos da infância: "Qualquer tentativa de harmonizar as narrações a ponto de fazer delas uma história coerente está fadada ao fracasso" (La nascita del Messia [O Nascimento do Messias], Assis, 1981, p. 677).
Ratzinger nem menciona Brown, mas justamente por isso a sua obra, apesar de algumas belas páginas de corte espiritual, vai ao encontro do destino prefigurado pelo grande biblista norte-americano.
A opinião é do teólogo italiano Vito Mancuso, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 21-11-2012.
Eis o texto.
Com o livro intitulado A infância de Jesus que chega às livrarias dos principais países do mundo, conclui-se a obra total de quase mil páginas em três volumes dedicada por Joseph Ratzinger a Jesus de Nazaré. Com ela, ele pretende fazer com que os católicos voltem a identificar narração evangélica e história real como ocorria até algumas décadas atrás, antes do desenvolvimento da moderna exegese histórico-crítica. O autor atinge o seu objetivo? A meu ver, não, porque se trata de uma mission impossible.
Todos amamos o Natal com a sua atmosfera de alegria e de paz, e esse novo livro do papa é uma grande ajuda para viver a sua espiritualidade. O objeto são os dois primeiros capítulos do Evangelho de Mateus e do Evangelho de Lucas, os chamados "evangelhos da infância". Por séculos, eles foram lidos como relatos históricos reais, mas hoje a exegese bíblica histórico-crítica é quase unânime em declarar o contrário. O objetivo do papa é de que os evangelhos da infância possam voltar a ser lidos como historicamente fundados.
O seu adversário de consequência não pode ser senão a exegese que, privilegiando a filologia e a historiografia, evidencia a problemática historicidade de muitas narrações evangélicas. Com isso, os exegetas não querem dizer que os Evangelhos são falsos, mas só que, com base neles, não se pode reconstruir com certeza a história de Jesus, muito menos a do seu nascimento, e que é preciso lê-los sabendo que a finalidade é teológico-espiritual e não historiográfica.
Nos Evangelhos, há dados historicamente certos ao lado de elaborações simbólicas historicamente não confiáveis, e a tarefa da exegese histórico-crítica consiste em distinguir as duas dimensões. A consequência inevitável, porém, é que o Jesus dos Evangelhos não coincide com o Jesus da história, isto é, o exato oposto da intenção programática de Ratzinger declarado no primeiro volume: "Apresentar o Jesus dos Evangelhos como o Jesus real, como o Jesus histórico em sentido propriamente dito". E, precisamente por isso, também no novo livro assim como nos anteriores, o papa dirige ataques recorrentes à exegese histórico-crítica (cf., por exemplo, as páginas 25, 60, 62, 78, 123).
Mas, como todos aqueles que, antes dele, tentaram harmonizar os relatos evangélicos, Ratzinger também sobrevoa sobre as contradições entre os relatos de Mateus e de Lucas. São eles que tornam impossível uma história da infância de Jesus digna desse nome, como consideram estudiosos do calibre de Brown, Sanders, Meier, Dunn, Barbaglio, Fabris, Maggioni, Jossa, Ortensio da Spinetoli, Pesce e muitos outros.
Certamente, entre Mateus e Lucas, há elementos comuns: a identidade dos pais, o anúncio evangélico, a concepção de Maria sem relações sexuais com o marido, o nascimento em Belém sob o reinado de Herodes, a transferência para Nazaré. Mas também há discordâncias que não podem ser harmonizadas: antes do nascimento de Jesus, Maria e José ou residiam em Nazaré (Lucas) ou residiam em Belém (Mateus); a sua viagem de Nazaré a Belém ou aconteceu (Lc) ou não aconteceu (Mt); Jesus nasceu ou na casa dos pais (Mt) ou em uma manjedoura (Lc); o massacre das crianças de Belém ou aconteceu (Mt) ou não aconteceu (Lc); os pais ou fugiram para o Egito para salvar o menino dos soldados de Herodes (Mt) ou foram ao templo de Jerusalém para a circuncisão sem que os soldados de Herodes se preocupassem com o menino (Lc); a família de Belém ou voltou logo para casa em Nazaré da Galileia (Lc) ou foi para Nazaré só depois de ter estado no Egito e pela primeira vez (Mt).
Além disso, é oposta a atmosfera abrangente que envolve o nascimento de Jesus, real e trágica em Mateus, simples e bucólica em Lucas: a quem dar crédito? Na mente dos fiéis, os dois relatos se misturam sem distinguir os elementos de um e de outro, e o papa promove essa tradicional mistura acrítica, mas a exigência historiográfica não o permite; os dados são ou como Mateus os apresenta ou como Lucas os apresenta, ou nem de um modo nem de outro; em todo caso, não são harmonizáveis. Portanto, se fosse verdade, como escreve Ratzinger, que Mateus e Lucas "queriam escrever história, história real, acontecida" (p. 26), encontraríamos realmente diante de um belo problema, porque um dos dois evangelistas seguramente estaria errado.
Além disso, está a questão de como a notícia da concepção virginal chegou aos evangelistas. O papa se inclina pela "tradição familiar" (p. 65), no sentido de que teria sido Maria que comunicou aos discípulos o extraordinário evento de ter concebido o filho sem relações sexuais. Mas, se realmente tivesse sido assim, não se explicaria a escassa atenção do Novo Testamento a Maria, incluindo o livro dos Atos dos Apóstolos escrito justamente por Lucas, que a menciona somente uma vez e quase de passagem, enquanto dá muito mais espaço não só a Pedro e a Paulo, mas até mesmo a personagens secundários como Lídia, a comerciante de púrpura.
É crível, talvez, que Lucas, sabendo diretamente de Maria sobre a concepção extraordinária de Jesus, a ignore completamente nos Atos, sem escrever nada sobre onde ela vivia, o que fazia, como terminou a sua vida terrena e sem nunca ter lhe dado a palavra sequer uma vez? Tudo isso leva a duvidar muito do que o papa sustenta.
A realidade é que os Evangelhos da infância apresentam um perfil histórico geral bastante improvável. O dado histórico seguro (o nascimento de Jesus) é circundado por uma série de particulares incertos, senão improváveis, começando pelo lugar do nascimento, que para o papa é, obviamente, a tradicional Belém, enquanto "a maioria dos estudiosos duvida que Jesus nasceu em Belém" (The Cambridge Companion to Jesus, p. 22), e um exegeta católico Raymond Brown chegou a falar de "provas positivas em favor de Nazaré".
Os Evangelhos, portanto, não são confiáveis? Não, são dignos de confiança, mas contanto que se diferenciem neles diversos níveis de historicidade, isto é, de dados historicamente seguros, dados prováveis e dados improváveis. Em particular, os evangelhos da infância são uma interpretação do significado existencial de Jesus, para cuja manifestação o relato do seu nascimento foi enriquecido por uma série de elementos simbólicos, como era normal na antiguidade para os grandes personagens. Tudo isso ao longo dos séculos serviu para atrair a atenção sobre Jesus, porque no passado a humanidade identificava a presença do divino com os milagres e o extraordinário. Hoje, no entanto, ocorre o contrário. Hoje, os milagres e o extraordinário são mais de dano do que de ajuda para a autêntica comunicação espiritual. Chegamos a uma visão de mundo mais pacata, mais desencantada, mais realista; aos frisos do barroco, prefere-se a austera simplicidade do romantismo.
Essa maior maturidade se reflete no trabalho da exegese bíblica mediante o método histórico-crítico, um trabalho sério e altamente qualificado, como nunca antes havia acontecido na história, um trabalho de porte internacional e interconfessional cujos resultados se oferecem à consciência sem forçações dogmáticas.
Ratzinger, porém, não gosta do método histórico-crítico; considera-o prejudicial para a fé e, talvez por isso, no seu livro, ele nem menciona o autor do estudo mais importante sobre os evangelhos da infância, o já citado Raymond Brown, sacerdote católico, por muito tempo membro da Pontifícia Comissão Bíblica.
Brown conclui assim a sua obra monumental sobre os evangelhos da infância: "Qualquer tentativa de harmonizar as narrações a ponto de fazer delas uma história coerente está fadada ao fracasso" (La nascita del Messia [O Nascimento do Messias], Assis, 1981, p. 677).
Ratzinger nem menciona Brown, mas justamente por isso a sua obra, apesar de algumas belas páginas de corte espiritual, vai ao encontro do destino prefigurado pelo grande biblista norte-americano.
Nenhum comentário:
Postar um comentário