O pronunciamento de Rowan Williams no Sínodo para a Nova Evangelização
“Em nossas deliberações sobre como deve ser feito para que o
Evangelho de Cristo seja novamente
apaixonadamente atrativo para os homens e mulheres de nossos dias, espero que
nunca percamos de vista aquilo que o faz apaixonante para nós, para cada um de
nós em nossos diferentes ministérios”, diz Rowan Williams, arcebispo da Igreja
anglicana, em pronunciamento por ocasião do Sínodo dos Bispos sobre a Nova Evangelização.
O texto é publicado no sítio Ameríndia. A tradução é do
Cepat.
Eis o pronunciamento.
Sua Santidade,
Reverendos Padres,
Irmãos e Irmãs em Cristo,
Queridos amigos, para mim é uma honra ter sido convidado pelo Santo Padre para falar nesta assembleia. Como diz o Salmista: “Ecce quam bonum et quam juncundum habitare fratres in unum”. A assembleia do Sínodo dos Bispos para o bem do povo de Cristo é uma dessas matérias que sustentam a saúde da Igreja de Cristo. Hoje, em especial, não podemos esquecer a grande assembleia de “frates in unum” que foi o Concílio Vaticano II, que tanto fez pela saúde da Igreja, ajudando a mesma a recuperar muito da energia necessária para a proclamação da Boa Nova de Jesus Cristo, de uma maneira eficaz em nosso tempo.
Para muita gente de minha geração, inclusive para além das fronteiras da Igreja católica romana, o Concílio foi um sinal de grande promessa, um sinal de que a Igreja era suficientemente forte para pensar questões difíceis em relação a sua cultura e estruturas, assim como se estas eram as adequadas para a tarefa de compartilhar o Evangelho com a complexa, muitas vezes rebelde e sempre inquieta mente do mundo moderno.
Em muitos aspectos, o Concílio foi uma redescoberta da inquietude e paixão evangélica, centrada não apenas na renovação da própria vida da Igreja, mas também em sua credibilidade no mundo. Textos como a “Lumen Gentium” e a “Gaudium et Spes” ofereceram uma visão fresca e prazerosa sobre como a imutável realidade de Cristo vivo em seu Corpo na terra, por meio do dom do Espírito Santo, pode falar com palavras novas à sociedade de nosso tempo e, inclusive, àqueles que pertencem a outros credos.
Não é surpresa que, cinquenta anos depois, continuemos debatendo sobre algumas das mesmas questões e implicações do Concílio. E penso que a preocupação deste Sínodo pela nova evangelização é parte dessa exploração contínua da herança do Concílio.
Um dos aspectos mais importantes da teologia, segundo o Vaticano II, foi a renovação da antropologia cristã. No lugar da narração neoescolástica, muitas vezes tergiversada e artificial, sobre como a graça e a natureza se relacionam na constituição do ser humano, o Concílio ampliou os elementos importantes de uma teologia que voltava às fontes mais precoces e ricas: a teologia de alguns gênios espirituais como Henri de Lubac, que nos recordou o que significava para o cristianismo primitivo e medieval falar da humanidade feita à imagem de Deus e da graça como a perfeição e transfiguração dessa imagem, durante muito tempo revestida de nossa habitual “desumanidade”. Sob esta luz, proclamar o Evangelho é proclamar que ao menos é possível ser adequadamente humano: a fé católica e cristã é um “verdadeiro humanismo”, adotando uma frase emprestada de outro gênio do século passado, Jacques Maritain.
Contudo, Lubac é muito claro sobre o que isto não significa. Nós não substituímos a tarefa evangélica por uma campanha de “humanização”. Ele pergunta: “Humanizar antes de cristianizar?” “Se isto obtém êxito, o cristianismo chegará muito tarde: tirar-lhe-ão o posto. E quem pensa que o cristianismo não humaniza?” Assim escreve Lubac em sua maravilhosa coleção de aforismos: “Paradoxos”. É a própria fé que configura o trabalho de humanização e a iniciativa de humanização estaria vazia sem a definição de humanidade dada no Segundo Adão. A evangelização, primitiva ou nova, dever estar enraizada na profunda confiança de que possuímos um destino humano inconfundível, para mostrar e compartilhar com o mundo. Há muitas maneiras de dizer isto, mas nestas breves observações quero me concentrar num único aspecto em particular.
Ser completamente humano é ser recriado na imagem da humanidade de Cristo; e esta humanidade é a perfeita “tradução” humana da relação entre o Filho eterno e o Pai eterno, uma relação de amor e de adorada entrega, um transbordamento de vida para o Outro. Assim, a humanidade na qual nos transformamos no Espírito, a humanidade que queremos compartilhar com o mundo, como fruto do trabalho redentor de Cristo, é uma humanidade contemplativa. Edith Stein observou que começamos a entender a teologia quando vemos Deus como o “Primeiro Teólogo”, o primeiro que fala acerca da realidade da vida divina, porque “todas as palavras sobre Deus pressupõem a própria palavra de Deus”. De forma análoga, poderíamos dizer que começamos a compreender a contemplação quando vemos Deus como o primeiro contemplativo, o paradigma eterno da desinteressada atenção ao outro que não traz a morte, mas a vida ao nosso eu. Toda contemplação de Deus pressupõe o próprio conhecimento prazeroso e absorto, em si mesmo, de Deus, olhando fixamente para a vida trinitária.
Ser contemplativo, assim como Cristo é contemplativo, é abrir-se para toda a plenitude que o Pai deseja derramar em nossos corações. Com nossas mentes serenas e preparadas para receber, com nossas autogeradas fantasias sobre Deus e sobre nós silenciadas, estamos por fim no ponto onde talvez possamos começar a crescer. E o rosto que precisamos mostrar ao nosso mundo é o rosto de uma humanidade em crescimento infinito para o amor, uma humanidade tão alegre e partícipe da glória para a qual nos dirigimos que nos disponibilizamos a embarcar numa viagem sem fim, para encontrar nosso caminho mais profundo nele, no coração da vida trinitária.
São Paulo fala de como “com o rosto descoberto, refletimos... a glória do Senhor” (2Co 3, 18), transfigurados por um resplendor cada vez maior. Este é o rosto que devemos nos esforçar para mostrar ao nosso próximo. E devemos nos esforçar não porque estejamos buscando alguma “experiência religiosa” particular que nos dê segurança e nos faça mais santos. Nós nos esforçamos porque neste esquecer-se de si mesmo, olhando fixamente para a luz de Deus em Cristo, aprendemos a como nos olharmos uns aos outros e toda a criação de Deus. Na Igreja primitiva havia uma clara compreensão da necessidade de avançar, a partir de uma autocompreeensão instigada pela disciplina de nossos ávidos instintos e anseios, para uma “natural contemplação” que percebia e venerava a sabedoria de Deus na ordem do mundo, permitindo-nos ver a realidade criada por aquilo que realmente era a visão de Deus – mais do que era no sentido de como podíamos usá-la ou dominá-la. E a partir disto, a graça nos guiaria para a verdadeira “teologia”, olhando fixa e silenciosamente para Deus, meta de todo nosso discipulado.
Nesta perspectiva, a contemplação está longe de ser apenas um tipo de coisa que os cristãos fazem. Ela é a chave para a oração, liturgia, arte e ética. A chave para a essência de uma humanidade renovada, capaz de ver o mundo e os outros sujeitos do mundo com liberdade – liberdade dos costumes egoístas e cobiçosos, e da compreensão distorcida que deles derivam. Para explicá-la com audácia, a contemplação é a única resposta ao mundo irreal e insano que nossos sistemas financeiros, nossa cultura da publicidade e nossas emoções caóticas e irreflexivas nos forçam a habitar. Aprender a prática contemplativa é aprender o que carecemos para viver de uma maneira verdadeira, honesta e amorosa. É uma questão profundamente revolucionária.
Em sua autobiografia, Thomas Merton descreve uma experiência que lhe aconteceu pouco depois de entrar no mosteiro, local em que passou o resto de sua vida (Silêncio escolhido). Teve gripe e ficou internado na enfermaria durante alguns dias, e disse que sentiu uma “alegria secreta” pela oportunidade que este fato lhe proporcionou para rezar e “fazer tudo o que queria fazer, sem ter que correr por todo o lugar atendendo a campainhas”. Assim, é obrigado a reconhecer que sua atitude revela que “todos os meus maus hábitos... tinham entrado sub-repticiamente comigo no mosteiro e tinham recebido os hábitos religiosos comigo: voracidade espiritual, sensualidade espiritual, orgulho espiritual”. Em outras palavras, ele tentava viver uma vida cristã com a bagagem emocional de alguém ainda profundamente comprometido com a busca da satisfação individual.
É um aviso poderoso: temos que ter cuidado para que nossa evangelização não sirva simplesmente como elemento de persuasão para que peçamos a Deus e à vida do espírito pelos fatos dramáticos, excitantes ou de autoadulação que muitas vezes satisfazem nossa vida diária. Isto foi expresso de forma mais contundente, há algumas décadas, pelo estadunidense estudante de religião Jacob Needleman, num livro controvertido e desafiante, intitulado “Cristianismo perdido”. As palavras do Evangelho, disse, estão dirigidas aos seres humanos que “já não existem”, ou seja, responder entregar-se àquilo que o Evangelho pede de nós significa transformar completamente nosso ser, nossos sentimentos e nossos pensamentos e imaginação. Converter-se à fé não significa simplesmente adotar um novo grupo de crenças, mas transformar-se numa nova pessoa, uma pessoa em comunhão com Deus e com outros através de Jesus Cristo.
A contemplação é um elemento intrínseco deste processo de transformação. Aprender a olhar Deus sem levar em conta a minha própria satisfação imediata, aprender a escrutinar e relativizar os anseios e fantasias que surgem dentro de mim, significa permitir a Deus ser Deus e, assim, permitir que a oração de Cristo, a própria relação de Deus com Deus, entre e viva dentro de mim. Invocar o Espírito Santo é pedir para que a terceira pessoa da Trindade entre em meu espírito e traga a claridade de que necessito para ver onde sou escravo de anseios e fantasias, para que me dê paciência e calma enquanto a luz e o amor de Deus penetram em minha vida interior. Somente se isto começar a acontecer é que não tratarei os dons de Deus como outro grupo de objetos que compro para ser feliz ou para dominar outros. E na medida em que este processo se desenvolve, sou mais livre – tomando emprestada uma frase de Santo Agostinho (Confissões IV. 7) – para “amar os seres humanos de uma maneira humana”, amar-lhes não pelo que me prometem, amar-lhes não porque me dão segurança e conforto duradouro, mas como meu próximo frágil, sustentado no amor de Deus. Descubro, então (como observamos anteriormente), como devo olhar as pessoas e as coisas que são em relação com Deus, não comigo. E é aqui onde a verdadeira justiça, como o verdadeiro amor, possui suas raízes.
O rosto humano que os cristãos querem oferecer ao mundo é um rosto marcado por esta justiça e este amor é, portanto, um rosto formado na contemplação, na disciplina do silêncio e na separação dos objetos que nos escravizam e dos instintos irracionais que nos decepcionam. Se a evangelização é uma questão de mostrar ao mundo o rosto humano “revelado” que reflita o rosto do Filho voltado ao Pai, deve levar nela o compromisso sério de fomentar e nutrir a oração e a prática. Não é necessário dizer que com isto não se pretende, em absoluto, discutir que esta transformação “interna” é mais importante que a ação pela justiça, mas sim se quer insistir no fato de que a clareza e a energia de que necessitamos para levar adiante a justiça requer que ofereçamos espaço à verdade, para que a realidade de Deus a atravesse. Do contrário, nossa busca pela justiça ou paz se converte em outro exercício de vontade humana, minada pela autodecepção humana. Os dois chamados são inseparáveis: o chamado à “oração e a reta ação”, como disse o mártir protestante Dietrich Bonhoeffer, escrevendo de sua cela na prisão, em 1944. A verdadeira oração purifica o motivo, a verdadeira justiça é o trabalho necessário para compartilhar e libertar em outros a humanidade que descobrimos em nosso encontro contemplativo.
Aqueles que pouco sabem e menos ainda se preocupam com as instituições e hierarquias da Igreja, nestes dias se encontram muitas vezes atraídos e desafiados por vidas que mostram algo disto. São as comunidades novas e renovadas aquelas que de maneira mais eficaz chegam àqueles que nunca creram ou que abandonaram a fé por ser vazia ou velha. Quando se escreve a história cristã de nosso tempo, especialmente em relação à Europa e América do Norte, mas não apenas, vemos o quão central e vital tem sido o testemunho de lugares como Taizé ou Bose, mas também o de outras comunidades mais tradicionais, transformadas em centros para a busca de uma humanidade mais ampla e profunda do que aquilo que os hábitos sociais fomentam. E as grandes redes de espiritualidade, como Santo Egídio, os Focolares, Comunhão e Libertação, mostram também o mesmo fenômeno: criam espaços para uma visão humana mais profunda, porque todos eles, de várias maneiras, oferecem uma disciplina de vida pessoal e comunitária que torna a realidade de Jesus viva em nós.
E, como mostram estes exemplos, a atração e o desafio daquilo que estamos falando podem criar compromissos e entusiasmos que cruzem as linhas confessionais históricas. Nestes dias, estamos acostumados a falar sobre a importância vital do “ecumenismo espiritual”, contudo, esta não dever ser uma questão que, de alguma maneira, oponha o espiritual e o institucional, e não deve substituir os compromissos específicos com um sentido geral de sentimento comum cristão. Se contarmos com uma descrição sólida e rica daquilo que a palavra “espiritual” em si mesma significa, enraizada nos conteúdos bíblicos como os da passagem da Segunda Epístola aos Coríntios, mencionada antes, entenderemos o ecumenismo espiritual como a busca compartilhada para nutrir e sustentar as matérias contemplativas, com a esperança de revelar o rosto de uma nova humanidade.
Quanto mais separados estivermos, como cristãos, de diferentes confissões, menos convincente será esse rosto. Eu mencionei o movimento dos Focolares: Vocês concordarão que o imperativo básico na espiritualidade de Chiara Lubich era “sejamos um” – um com Cristo Crucificado e abandonado, um por meio Dele com o Pai, um com todos os chamados a esta unidade e, portanto, um com os mais necessitados do mundo. “Os que vivem em unidade... vivem fazendo com que eles próprios penetrem mais em Deus. Crescem sempre mais próximos de Deus... e quanto mais próximos estão Dele, mais próximos estão dos corações de seus irmãos e irmãs” (Chiara Lubich: Escritos essenciais). O hábito contemplativo suprime uma desatenta superioridade em relação a outros crentes batizados e a suposição de que não tenho nada a aprender deles. Na medida em que o hábito da contemplação nos ajuda a nos aproximarmos desta experiência como um dom, sempre nos perguntaremos sobre o que o irmão ou irmã pode compartilhar conosco – inclusive, o irmão ou irmã que de alguma maneira está separado de nós ou daquilo que supomos que é a plenitude na comunhão. “Quam bonum et quam jucundum...”.
Na prática isto pode sugerir que ali onde são realizadas iniciativas para alcançar, com novos meios, um público cristão não praticante ou pós-cristão, deve ocorrer um trabalho sério sobre a forma como este alcance pode se enraizar numa prática contemplativa, compartilhada ecumenicamente. Além do modo surpreendente pelo qual Taizé desenvolveu uma “cultura” litúrgica internacional, acessível a uma grande variedade de pessoas, uma rede como a Comunidade Mundial para a Meditação Cristã, com suas fortes raízes e afiliações beneditinas, trouxe novas possibilidades. E mais, esta comunidade trabalhou com afinco para criar uma prática contemplativa acessível às crianças e jovens, e isso precisa contar com o maior incentivo possível. Tendo visto de perto – nas escolas anglicanas da Inglaterra – o modo caloroso como as crianças respondem ao convite oferecido pela meditação nesta tradição, acredito que seu potencial para introduzir as pessoas jovens na profundidade de nossa fé é verdadeiramente muito grande. E para aqueles que se distanciaram da prática regular da fé sacramental, os ritmos e as práticas de Taizé ou da CMMC (WCCM suas siglas em inglês) são muitas vezes um caminho de regresso ao coração e ao lar sacramental.
Gente de todas as idades reconhece nestas práticas a possibilidade, bastante simples, de viver mais humanamente – viver com uma cobiça menos frenética, viver com espaço para a serenidade, viver esperando aprender e, sobretudo, viver com a consciência de que há um gozo sólido e perdurável a ser descoberto nas matérias pelas quais esquecemos nosso próprio eu, bastante diferentes da gratificação que vem deste ou daquele impulso de momento. Caso nossa evangelização não abra a porta a tudo isto, corremos o risco de tentar sustentar a fé nos baseando numa série imutável de hábitos humanos – com o conseguinte resultado demasiado familiar para a Igreja, vista como uma mais das instituições puramente humanas, ansiosas, ocupadas, competitivas e controladoras. Num sentido muito importante, uma verdadeira tarefa evangelizadora será sempre também uma reevangelização de nós mesmos como cristãos, um redescobrir porque nossa fé é diferente, pois transfigura, e um recuperar nossa própria humanidade.
E, é claro, acontece de maneira mais eficaz quando não estamos planejando ou lutando por ela. Voltando novamente a Lubac: “Aquele que melhor responderá as necessidades de seu tempo será o que não fizer caso de responder a elas primeiramente” (op.cit.). E “o homem que busca sinceridade ao invés de buscar a verdade, no esquecimento de si mesmo, é como o homem que quer ficar distante ao invés de se abandonar completamente no amor” (op.cit.). O inimigo da proclamação do Evangelho é a autoconsciência e, por definição, não podemos superá-lo sendo mais conscientes de nós mesmos. Devemos voltar a São Paulo e nos perguntar: “O que buscamos?” Olhamos com ansiedade os problemas atuais, a variedade de infidelidades ou a ameaça à fé e a moralidade, a fragilidade da instituição? Ou buscamos Jesus, o rosto revelado da imagem de Deus, luz pela qual vemos a imagem do novo refletida em nós e em nossos vizinhos?
Isto simplesmente nos lembra de que a evangelização é sempre o transbordamento de outra coisa: a viagem do discípulo para a maturidade em Cristo; uma viagem que não está organizada por um ego ambicioso, mas que é o resultado da insistência e da atração do Espírito em nós. Em nossas deliberações sobre como deve ser feito para que o Evangelho de Cristo seja novamente apaixonadamente atrativo para os homens e mulheres de nossos dias, espero que nunca percamos de vista aquilo que o faz apaixonante para nós, para cada um de nós em nossos diferentes ministérios. Desejo-lhes regozijo nestes debates, nãos apenas clareza ou eficácia no planejamento, mas deleite na promessa da visão do rosto de Cristo e no anúncio dessa plenitude na alegria da comunhão um com o outro, aqui e agora.
Eis o pronunciamento.
Sua Santidade,
Reverendos Padres,
Irmãos e Irmãs em Cristo,
Queridos amigos, para mim é uma honra ter sido convidado pelo Santo Padre para falar nesta assembleia. Como diz o Salmista: “Ecce quam bonum et quam juncundum habitare fratres in unum”. A assembleia do Sínodo dos Bispos para o bem do povo de Cristo é uma dessas matérias que sustentam a saúde da Igreja de Cristo. Hoje, em especial, não podemos esquecer a grande assembleia de “frates in unum” que foi o Concílio Vaticano II, que tanto fez pela saúde da Igreja, ajudando a mesma a recuperar muito da energia necessária para a proclamação da Boa Nova de Jesus Cristo, de uma maneira eficaz em nosso tempo.
Para muita gente de minha geração, inclusive para além das fronteiras da Igreja católica romana, o Concílio foi um sinal de grande promessa, um sinal de que a Igreja era suficientemente forte para pensar questões difíceis em relação a sua cultura e estruturas, assim como se estas eram as adequadas para a tarefa de compartilhar o Evangelho com a complexa, muitas vezes rebelde e sempre inquieta mente do mundo moderno.
Em muitos aspectos, o Concílio foi uma redescoberta da inquietude e paixão evangélica, centrada não apenas na renovação da própria vida da Igreja, mas também em sua credibilidade no mundo. Textos como a “Lumen Gentium” e a “Gaudium et Spes” ofereceram uma visão fresca e prazerosa sobre como a imutável realidade de Cristo vivo em seu Corpo na terra, por meio do dom do Espírito Santo, pode falar com palavras novas à sociedade de nosso tempo e, inclusive, àqueles que pertencem a outros credos.
Não é surpresa que, cinquenta anos depois, continuemos debatendo sobre algumas das mesmas questões e implicações do Concílio. E penso que a preocupação deste Sínodo pela nova evangelização é parte dessa exploração contínua da herança do Concílio.
Um dos aspectos mais importantes da teologia, segundo o Vaticano II, foi a renovação da antropologia cristã. No lugar da narração neoescolástica, muitas vezes tergiversada e artificial, sobre como a graça e a natureza se relacionam na constituição do ser humano, o Concílio ampliou os elementos importantes de uma teologia que voltava às fontes mais precoces e ricas: a teologia de alguns gênios espirituais como Henri de Lubac, que nos recordou o que significava para o cristianismo primitivo e medieval falar da humanidade feita à imagem de Deus e da graça como a perfeição e transfiguração dessa imagem, durante muito tempo revestida de nossa habitual “desumanidade”. Sob esta luz, proclamar o Evangelho é proclamar que ao menos é possível ser adequadamente humano: a fé católica e cristã é um “verdadeiro humanismo”, adotando uma frase emprestada de outro gênio do século passado, Jacques Maritain.
Contudo, Lubac é muito claro sobre o que isto não significa. Nós não substituímos a tarefa evangélica por uma campanha de “humanização”. Ele pergunta: “Humanizar antes de cristianizar?” “Se isto obtém êxito, o cristianismo chegará muito tarde: tirar-lhe-ão o posto. E quem pensa que o cristianismo não humaniza?” Assim escreve Lubac em sua maravilhosa coleção de aforismos: “Paradoxos”. É a própria fé que configura o trabalho de humanização e a iniciativa de humanização estaria vazia sem a definição de humanidade dada no Segundo Adão. A evangelização, primitiva ou nova, dever estar enraizada na profunda confiança de que possuímos um destino humano inconfundível, para mostrar e compartilhar com o mundo. Há muitas maneiras de dizer isto, mas nestas breves observações quero me concentrar num único aspecto em particular.
Ser completamente humano é ser recriado na imagem da humanidade de Cristo; e esta humanidade é a perfeita “tradução” humana da relação entre o Filho eterno e o Pai eterno, uma relação de amor e de adorada entrega, um transbordamento de vida para o Outro. Assim, a humanidade na qual nos transformamos no Espírito, a humanidade que queremos compartilhar com o mundo, como fruto do trabalho redentor de Cristo, é uma humanidade contemplativa. Edith Stein observou que começamos a entender a teologia quando vemos Deus como o “Primeiro Teólogo”, o primeiro que fala acerca da realidade da vida divina, porque “todas as palavras sobre Deus pressupõem a própria palavra de Deus”. De forma análoga, poderíamos dizer que começamos a compreender a contemplação quando vemos Deus como o primeiro contemplativo, o paradigma eterno da desinteressada atenção ao outro que não traz a morte, mas a vida ao nosso eu. Toda contemplação de Deus pressupõe o próprio conhecimento prazeroso e absorto, em si mesmo, de Deus, olhando fixamente para a vida trinitária.
Ser contemplativo, assim como Cristo é contemplativo, é abrir-se para toda a plenitude que o Pai deseja derramar em nossos corações. Com nossas mentes serenas e preparadas para receber, com nossas autogeradas fantasias sobre Deus e sobre nós silenciadas, estamos por fim no ponto onde talvez possamos começar a crescer. E o rosto que precisamos mostrar ao nosso mundo é o rosto de uma humanidade em crescimento infinito para o amor, uma humanidade tão alegre e partícipe da glória para a qual nos dirigimos que nos disponibilizamos a embarcar numa viagem sem fim, para encontrar nosso caminho mais profundo nele, no coração da vida trinitária.
São Paulo fala de como “com o rosto descoberto, refletimos... a glória do Senhor” (2Co 3, 18), transfigurados por um resplendor cada vez maior. Este é o rosto que devemos nos esforçar para mostrar ao nosso próximo. E devemos nos esforçar não porque estejamos buscando alguma “experiência religiosa” particular que nos dê segurança e nos faça mais santos. Nós nos esforçamos porque neste esquecer-se de si mesmo, olhando fixamente para a luz de Deus em Cristo, aprendemos a como nos olharmos uns aos outros e toda a criação de Deus. Na Igreja primitiva havia uma clara compreensão da necessidade de avançar, a partir de uma autocompreeensão instigada pela disciplina de nossos ávidos instintos e anseios, para uma “natural contemplação” que percebia e venerava a sabedoria de Deus na ordem do mundo, permitindo-nos ver a realidade criada por aquilo que realmente era a visão de Deus – mais do que era no sentido de como podíamos usá-la ou dominá-la. E a partir disto, a graça nos guiaria para a verdadeira “teologia”, olhando fixa e silenciosamente para Deus, meta de todo nosso discipulado.
Nesta perspectiva, a contemplação está longe de ser apenas um tipo de coisa que os cristãos fazem. Ela é a chave para a oração, liturgia, arte e ética. A chave para a essência de uma humanidade renovada, capaz de ver o mundo e os outros sujeitos do mundo com liberdade – liberdade dos costumes egoístas e cobiçosos, e da compreensão distorcida que deles derivam. Para explicá-la com audácia, a contemplação é a única resposta ao mundo irreal e insano que nossos sistemas financeiros, nossa cultura da publicidade e nossas emoções caóticas e irreflexivas nos forçam a habitar. Aprender a prática contemplativa é aprender o que carecemos para viver de uma maneira verdadeira, honesta e amorosa. É uma questão profundamente revolucionária.
Em sua autobiografia, Thomas Merton descreve uma experiência que lhe aconteceu pouco depois de entrar no mosteiro, local em que passou o resto de sua vida (Silêncio escolhido). Teve gripe e ficou internado na enfermaria durante alguns dias, e disse que sentiu uma “alegria secreta” pela oportunidade que este fato lhe proporcionou para rezar e “fazer tudo o que queria fazer, sem ter que correr por todo o lugar atendendo a campainhas”. Assim, é obrigado a reconhecer que sua atitude revela que “todos os meus maus hábitos... tinham entrado sub-repticiamente comigo no mosteiro e tinham recebido os hábitos religiosos comigo: voracidade espiritual, sensualidade espiritual, orgulho espiritual”. Em outras palavras, ele tentava viver uma vida cristã com a bagagem emocional de alguém ainda profundamente comprometido com a busca da satisfação individual.
É um aviso poderoso: temos que ter cuidado para que nossa evangelização não sirva simplesmente como elemento de persuasão para que peçamos a Deus e à vida do espírito pelos fatos dramáticos, excitantes ou de autoadulação que muitas vezes satisfazem nossa vida diária. Isto foi expresso de forma mais contundente, há algumas décadas, pelo estadunidense estudante de religião Jacob Needleman, num livro controvertido e desafiante, intitulado “Cristianismo perdido”. As palavras do Evangelho, disse, estão dirigidas aos seres humanos que “já não existem”, ou seja, responder entregar-se àquilo que o Evangelho pede de nós significa transformar completamente nosso ser, nossos sentimentos e nossos pensamentos e imaginação. Converter-se à fé não significa simplesmente adotar um novo grupo de crenças, mas transformar-se numa nova pessoa, uma pessoa em comunhão com Deus e com outros através de Jesus Cristo.
A contemplação é um elemento intrínseco deste processo de transformação. Aprender a olhar Deus sem levar em conta a minha própria satisfação imediata, aprender a escrutinar e relativizar os anseios e fantasias que surgem dentro de mim, significa permitir a Deus ser Deus e, assim, permitir que a oração de Cristo, a própria relação de Deus com Deus, entre e viva dentro de mim. Invocar o Espírito Santo é pedir para que a terceira pessoa da Trindade entre em meu espírito e traga a claridade de que necessito para ver onde sou escravo de anseios e fantasias, para que me dê paciência e calma enquanto a luz e o amor de Deus penetram em minha vida interior. Somente se isto começar a acontecer é que não tratarei os dons de Deus como outro grupo de objetos que compro para ser feliz ou para dominar outros. E na medida em que este processo se desenvolve, sou mais livre – tomando emprestada uma frase de Santo Agostinho (Confissões IV. 7) – para “amar os seres humanos de uma maneira humana”, amar-lhes não pelo que me prometem, amar-lhes não porque me dão segurança e conforto duradouro, mas como meu próximo frágil, sustentado no amor de Deus. Descubro, então (como observamos anteriormente), como devo olhar as pessoas e as coisas que são em relação com Deus, não comigo. E é aqui onde a verdadeira justiça, como o verdadeiro amor, possui suas raízes.
O rosto humano que os cristãos querem oferecer ao mundo é um rosto marcado por esta justiça e este amor é, portanto, um rosto formado na contemplação, na disciplina do silêncio e na separação dos objetos que nos escravizam e dos instintos irracionais que nos decepcionam. Se a evangelização é uma questão de mostrar ao mundo o rosto humano “revelado” que reflita o rosto do Filho voltado ao Pai, deve levar nela o compromisso sério de fomentar e nutrir a oração e a prática. Não é necessário dizer que com isto não se pretende, em absoluto, discutir que esta transformação “interna” é mais importante que a ação pela justiça, mas sim se quer insistir no fato de que a clareza e a energia de que necessitamos para levar adiante a justiça requer que ofereçamos espaço à verdade, para que a realidade de Deus a atravesse. Do contrário, nossa busca pela justiça ou paz se converte em outro exercício de vontade humana, minada pela autodecepção humana. Os dois chamados são inseparáveis: o chamado à “oração e a reta ação”, como disse o mártir protestante Dietrich Bonhoeffer, escrevendo de sua cela na prisão, em 1944. A verdadeira oração purifica o motivo, a verdadeira justiça é o trabalho necessário para compartilhar e libertar em outros a humanidade que descobrimos em nosso encontro contemplativo.
Aqueles que pouco sabem e menos ainda se preocupam com as instituições e hierarquias da Igreja, nestes dias se encontram muitas vezes atraídos e desafiados por vidas que mostram algo disto. São as comunidades novas e renovadas aquelas que de maneira mais eficaz chegam àqueles que nunca creram ou que abandonaram a fé por ser vazia ou velha. Quando se escreve a história cristã de nosso tempo, especialmente em relação à Europa e América do Norte, mas não apenas, vemos o quão central e vital tem sido o testemunho de lugares como Taizé ou Bose, mas também o de outras comunidades mais tradicionais, transformadas em centros para a busca de uma humanidade mais ampla e profunda do que aquilo que os hábitos sociais fomentam. E as grandes redes de espiritualidade, como Santo Egídio, os Focolares, Comunhão e Libertação, mostram também o mesmo fenômeno: criam espaços para uma visão humana mais profunda, porque todos eles, de várias maneiras, oferecem uma disciplina de vida pessoal e comunitária que torna a realidade de Jesus viva em nós.
E, como mostram estes exemplos, a atração e o desafio daquilo que estamos falando podem criar compromissos e entusiasmos que cruzem as linhas confessionais históricas. Nestes dias, estamos acostumados a falar sobre a importância vital do “ecumenismo espiritual”, contudo, esta não dever ser uma questão que, de alguma maneira, oponha o espiritual e o institucional, e não deve substituir os compromissos específicos com um sentido geral de sentimento comum cristão. Se contarmos com uma descrição sólida e rica daquilo que a palavra “espiritual” em si mesma significa, enraizada nos conteúdos bíblicos como os da passagem da Segunda Epístola aos Coríntios, mencionada antes, entenderemos o ecumenismo espiritual como a busca compartilhada para nutrir e sustentar as matérias contemplativas, com a esperança de revelar o rosto de uma nova humanidade.
Quanto mais separados estivermos, como cristãos, de diferentes confissões, menos convincente será esse rosto. Eu mencionei o movimento dos Focolares: Vocês concordarão que o imperativo básico na espiritualidade de Chiara Lubich era “sejamos um” – um com Cristo Crucificado e abandonado, um por meio Dele com o Pai, um com todos os chamados a esta unidade e, portanto, um com os mais necessitados do mundo. “Os que vivem em unidade... vivem fazendo com que eles próprios penetrem mais em Deus. Crescem sempre mais próximos de Deus... e quanto mais próximos estão Dele, mais próximos estão dos corações de seus irmãos e irmãs” (Chiara Lubich: Escritos essenciais). O hábito contemplativo suprime uma desatenta superioridade em relação a outros crentes batizados e a suposição de que não tenho nada a aprender deles. Na medida em que o hábito da contemplação nos ajuda a nos aproximarmos desta experiência como um dom, sempre nos perguntaremos sobre o que o irmão ou irmã pode compartilhar conosco – inclusive, o irmão ou irmã que de alguma maneira está separado de nós ou daquilo que supomos que é a plenitude na comunhão. “Quam bonum et quam jucundum...”.
Na prática isto pode sugerir que ali onde são realizadas iniciativas para alcançar, com novos meios, um público cristão não praticante ou pós-cristão, deve ocorrer um trabalho sério sobre a forma como este alcance pode se enraizar numa prática contemplativa, compartilhada ecumenicamente. Além do modo surpreendente pelo qual Taizé desenvolveu uma “cultura” litúrgica internacional, acessível a uma grande variedade de pessoas, uma rede como a Comunidade Mundial para a Meditação Cristã, com suas fortes raízes e afiliações beneditinas, trouxe novas possibilidades. E mais, esta comunidade trabalhou com afinco para criar uma prática contemplativa acessível às crianças e jovens, e isso precisa contar com o maior incentivo possível. Tendo visto de perto – nas escolas anglicanas da Inglaterra – o modo caloroso como as crianças respondem ao convite oferecido pela meditação nesta tradição, acredito que seu potencial para introduzir as pessoas jovens na profundidade de nossa fé é verdadeiramente muito grande. E para aqueles que se distanciaram da prática regular da fé sacramental, os ritmos e as práticas de Taizé ou da CMMC (WCCM suas siglas em inglês) são muitas vezes um caminho de regresso ao coração e ao lar sacramental.
Gente de todas as idades reconhece nestas práticas a possibilidade, bastante simples, de viver mais humanamente – viver com uma cobiça menos frenética, viver com espaço para a serenidade, viver esperando aprender e, sobretudo, viver com a consciência de que há um gozo sólido e perdurável a ser descoberto nas matérias pelas quais esquecemos nosso próprio eu, bastante diferentes da gratificação que vem deste ou daquele impulso de momento. Caso nossa evangelização não abra a porta a tudo isto, corremos o risco de tentar sustentar a fé nos baseando numa série imutável de hábitos humanos – com o conseguinte resultado demasiado familiar para a Igreja, vista como uma mais das instituições puramente humanas, ansiosas, ocupadas, competitivas e controladoras. Num sentido muito importante, uma verdadeira tarefa evangelizadora será sempre também uma reevangelização de nós mesmos como cristãos, um redescobrir porque nossa fé é diferente, pois transfigura, e um recuperar nossa própria humanidade.
E, é claro, acontece de maneira mais eficaz quando não estamos planejando ou lutando por ela. Voltando novamente a Lubac: “Aquele que melhor responderá as necessidades de seu tempo será o que não fizer caso de responder a elas primeiramente” (op.cit.). E “o homem que busca sinceridade ao invés de buscar a verdade, no esquecimento de si mesmo, é como o homem que quer ficar distante ao invés de se abandonar completamente no amor” (op.cit.). O inimigo da proclamação do Evangelho é a autoconsciência e, por definição, não podemos superá-lo sendo mais conscientes de nós mesmos. Devemos voltar a São Paulo e nos perguntar: “O que buscamos?” Olhamos com ansiedade os problemas atuais, a variedade de infidelidades ou a ameaça à fé e a moralidade, a fragilidade da instituição? Ou buscamos Jesus, o rosto revelado da imagem de Deus, luz pela qual vemos a imagem do novo refletida em nós e em nossos vizinhos?
Isto simplesmente nos lembra de que a evangelização é sempre o transbordamento de outra coisa: a viagem do discípulo para a maturidade em Cristo; uma viagem que não está organizada por um ego ambicioso, mas que é o resultado da insistência e da atração do Espírito em nós. Em nossas deliberações sobre como deve ser feito para que o Evangelho de Cristo seja novamente apaixonadamente atrativo para os homens e mulheres de nossos dias, espero que nunca percamos de vista aquilo que o faz apaixonante para nós, para cada um de nós em nossos diferentes ministérios. Desejo-lhes regozijo nestes debates, nãos apenas clareza ou eficácia no planejamento, mas deleite na promessa da visão do rosto de Cristo e no anúncio dessa plenitude na alegria da comunhão um com o outro, aqui e agora.
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